I
Num sítio abandonado, à beira de um igarapé, sentei-me um dia a meditar. Outrora, aqui havia uma cachoeira, ou será que ainda há? Daqui, eu não ouço nada, nenhum barulho de queda d’água, somente o murmúrio do igarapé, num lento passar.
De minha infância, recordo, quando ficava n’ água a brincar e entre botos e mães d’água, a cachoeira cantava, deixando a meninice voar.
Hoje, em meio aos dejetos no igarapé espalhados, ficam também minhas lembranças. Já não há botos, nem mães d’água; resta apenas um sítio, com um triste igarapé de águas maltratadas; sem cachoeiras, sem poesia, sem nada.
II
Sentada à beira do igarapé, olhava a água correr mansamente. Mansamente passando por entre minhas mãos, brincando por debaixo de meus pés, passando, passando, passando, levando consigo minhas lembranças, não tão antigas, nem mais tão jovens; lembranças que, logo despencariam cachoeira abaixo. Ainda há uma cachoeira? Daqui, não ouço barulho de água caindo.
Quando era pequena, vinha muito aqui. Recordo-me de meu pai, sentado neste mesmo lugar, contando velhas estórias de botos e mães d'água.
Do outro lado da margem está um homem de chapéu. Olha-me de forma curiosa (quem sabe, tentando adivinhar meus pensamentos) talvez seja algum turista que também parou para apreciar a beleza do lugar, pois, apesar de tudo, ainda é belo. Torno a voltar minha atenção para o correr das águas e as lembranças de minha infância. Vejo meu pai, alegre, vir ao meu encontro, falando do tempo em que os encantados habitavam estas águas. Conta-me mais uma estória, desta vez, é sobre uma cidade afundada pelo boto 1!
''E tudo por causa de Dora, caboclinha bonita como nunca se viu. Foi há muito tempo. Aqui, neste mesmo lugar, em que calmamente agora conversamos, existia um pequeno povoado. Isso foi bem antes, porque depois o povoado cresceu e virou cidade; cidade grande: selva dura de asfalto e edifício. Isso foi muito antes! Dora vivia com seus pais. Dá para imaginar, filha, quantas e quantas vezes, ela veio lavar roupa nestas beiras? Cantando e batendo as roupas nas pedras, tomando banho e cantando. O pai de Dora era pescador; pescador dos bons, respeitador das leis da natureza. Já a mãe, era tantinho nervosa. A beleza de Dora deixava-a preocupada. Seu coração de mãe apertava-se sempre que a menina saía para banhar-se ou lavar a roupa, principalmente, depois que Dora havia ficado moça.
Era costume entre os pescadores, nas noites enluaradas, reunirem-se para festejar. Festejavam assim por qualquer coisa, qualquer coisa era motivo para cantar e dançar até o dia amanhecer. Sabe filha, era uma vida feliz, bastante feliz. Como disse, Dora era muito bonita e como toda moça bonita, gostava de freqüentar estas reuniões, a qual, sem pretensão alguma, aquela gente simples, chamava de 'baile', e assim que completasse quinze anos, teria a permissão de seus pais para namorar, e bonita do jeito que era, não lhe faltaria pretendentes. Este dia estava perto e como também era querida por todos, concordaram em dar uma festa com muitos comes e bebes; bandeirolas de papel, música e dança, muita dança!
Finalmente, a bendita noite, tão esperada, chegou. A lua cheia iluminando a escuridão. Que noite bonita filha! Acho que nunca mais haverá uma noite como aquela. O baile começou com o povo numa alegria sem fim. Dançaram a mais não poder. Estava tudo tão animado que não entendiam, porque Dora continuava sentada, afinal, era seu aniversário. Dora, na flor de seus quinze anos, toda de branco, parecia infeliz. Ansiosamente, olhava, para a porta de entrada. Parecia esperar por alguém, alguém que tardava em aparecer. Mas, de repente, seu rosto ilumina-se com um sorriso, e a mãe de Dora, que a essa altura, já se encontrava bastante apreensiva com o desânimo da filha, percebe a mudança. Volta-se para onde a jovem olha com tanto interesse, e o que vê a deixa transtornada e mais ainda, quando Dora levantando-se, vai ao encontro do estranho que acabara de chegar. É um belo homem, moreno, alto, vestido de branco, com um elegante chapéu de panamá 2 na cabeça. Dona Francisquinha, assim se chamava a mãe de Dora, não se engana. Ela sabe quem ele é, e no desespero que lhe assalta, começa a gritar: 'É ele, é ele, o encantado, o excomungado, o maldito, o coisa ruim. Não, ajudem-me, ajudem-me, não deixem que ele leve a minha menina! Minha filha, minha filhinha... Acordem, por favor, acooordem'.
Sai correndo, esbarrando nos casais, que nem dão conta do que está acontecendo. A música, cada vez mais alta, impede que dona Francisquinha se faça ouvir. Ninguém a escuta nem o marido, o pai de Dora, pescador dos bons, respeitador das leis da natureza, parece compreender o que se passa. Continua encostado a um canto, pitando o cigarrinho de palha, indiferente a tudo. O povo está enfeitiçado e dona Francisquinha, isolada em sua aflição, cai, derrotada enquanto Dora, a linda Dora, rodopiando nos braços do estranho, vai, cada vez mais para longe da proteção de sua mãe.
O baile continuou noite adentro, era tão grande o encantamento, tão boa a diversão que ninguém sentiu a terra cedendo; afundando, afundando, afundando, até ser completamente coberta pelas águas. Somente dona Francisquinha, num derradeiro esforço, conseguiu salvar-se e aqui ficou, sem afastar-se dessas margens, sempre à espera de Dora. Porém, Dora não mais voltou. Apenas ele, o maldito, aprecia para fazer troça de dona Francisquinha e ela, tomada de fúria sobre-humana, entrava n'água, e tentava matá-lo, mas ele, o maldito, o excomungado, o coisa ruim, nadando numa velocidade fabulosa, facilmente escapava-lhe. Deitando água pelo furo que há em sua cabeça, era como se gargalhasse daquela que achava que podia enfrentá-lo.
E dona Francisquinha, cansada, nadava de volta às margens, onde se sentava, esperando a noite cair. E quando escurecia, lá embaixo o baile recomeçava, com Dora toda de branco, eternamente na flor de seus quinze anos, dançando nos braços do boto''.
Assim que terminou de contar-me a estória, meu pai me disse: “Filha; preciso ir. Logo será noite, e não é bom que a escuridão te surpreenda aqui sozinha. Dizem que até hoje a cidade submersa festeja a chegada de algum visitante”. Deu-me um beijo e desvaneceu-se na luz dos últimos raios de sol.
Eis que um barulho chama-me de volta à realidade. Na outra margem, o turista de chapéu já não está. De dentro d'água salta um boto brincalhão; espirrando água pelo furo. Engraçado! Parece uma despedida, com se estivesse dizendo-me adeus, como se soubesse que está sem lar; com igarapés e rios poluídos, sem belas cachoeiras e sem velhas estórias.
Por um momento, sinto-me como dona Francisquinha, desesperada por não conseguir salvar o que ama, sentada para sempre nestas margens, esperando o retorno do que não mais podia retornar.
O boto seguiu no rumo da cachoeira, levando consigo meus lugares de infância, o amor de meu pai e as velhas estórias. Lembranças que logo despencariam cachoeira abaixo.
Segui o conselho de meu pai e parti antes do anoitecer, levando nas mãos o chapéu branco que o turista, talvez por distração, deixara cair na água e que o boto em sua brincadeira trouxera para junto de mim. Prestes a entrar no carro, julguei ter ouvido algo; mas, longe, muito longe, parecia música?
E por que não! Quem sabe, fosse somente o recomeço do baile na cidadezinha submersa em que Dora morava, eterna menina-moça, ou então, fosse apenas o suave barulho da cachoeira que, a despeito de tudo, ainda conseguia cantar.
Num sítio abandonado, à beira de um igarapé, sentei-me um dia a meditar. Outrora, aqui havia uma cachoeira, ou será que ainda há? Daqui, eu não ouço nada, nenhum barulho de queda d’água, somente o murmúrio do igarapé, num lento passar.
De minha infância, recordo, quando ficava n’ água a brincar e entre botos e mães d’água, a cachoeira cantava, deixando a meninice voar.
Hoje, em meio aos dejetos no igarapé espalhados, ficam também minhas lembranças. Já não há botos, nem mães d’água; resta apenas um sítio, com um triste igarapé de águas maltratadas; sem cachoeiras, sem poesia, sem nada.
II
Sentada à beira do igarapé, olhava a água correr mansamente. Mansamente passando por entre minhas mãos, brincando por debaixo de meus pés, passando, passando, passando, levando consigo minhas lembranças, não tão antigas, nem mais tão jovens; lembranças que, logo despencariam cachoeira abaixo. Ainda há uma cachoeira? Daqui, não ouço barulho de água caindo.
Quando era pequena, vinha muito aqui. Recordo-me de meu pai, sentado neste mesmo lugar, contando velhas estórias de botos e mães d'água.
Do outro lado da margem está um homem de chapéu. Olha-me de forma curiosa (quem sabe, tentando adivinhar meus pensamentos) talvez seja algum turista que também parou para apreciar a beleza do lugar, pois, apesar de tudo, ainda é belo. Torno a voltar minha atenção para o correr das águas e as lembranças de minha infância. Vejo meu pai, alegre, vir ao meu encontro, falando do tempo em que os encantados habitavam estas águas. Conta-me mais uma estória, desta vez, é sobre uma cidade afundada pelo boto 1!
''E tudo por causa de Dora, caboclinha bonita como nunca se viu. Foi há muito tempo. Aqui, neste mesmo lugar, em que calmamente agora conversamos, existia um pequeno povoado. Isso foi bem antes, porque depois o povoado cresceu e virou cidade; cidade grande: selva dura de asfalto e edifício. Isso foi muito antes! Dora vivia com seus pais. Dá para imaginar, filha, quantas e quantas vezes, ela veio lavar roupa nestas beiras? Cantando e batendo as roupas nas pedras, tomando banho e cantando. O pai de Dora era pescador; pescador dos bons, respeitador das leis da natureza. Já a mãe, era tantinho nervosa. A beleza de Dora deixava-a preocupada. Seu coração de mãe apertava-se sempre que a menina saía para banhar-se ou lavar a roupa, principalmente, depois que Dora havia ficado moça.
Era costume entre os pescadores, nas noites enluaradas, reunirem-se para festejar. Festejavam assim por qualquer coisa, qualquer coisa era motivo para cantar e dançar até o dia amanhecer. Sabe filha, era uma vida feliz, bastante feliz. Como disse, Dora era muito bonita e como toda moça bonita, gostava de freqüentar estas reuniões, a qual, sem pretensão alguma, aquela gente simples, chamava de 'baile', e assim que completasse quinze anos, teria a permissão de seus pais para namorar, e bonita do jeito que era, não lhe faltaria pretendentes. Este dia estava perto e como também era querida por todos, concordaram em dar uma festa com muitos comes e bebes; bandeirolas de papel, música e dança, muita dança!
Finalmente, a bendita noite, tão esperada, chegou. A lua cheia iluminando a escuridão. Que noite bonita filha! Acho que nunca mais haverá uma noite como aquela. O baile começou com o povo numa alegria sem fim. Dançaram a mais não poder. Estava tudo tão animado que não entendiam, porque Dora continuava sentada, afinal, era seu aniversário. Dora, na flor de seus quinze anos, toda de branco, parecia infeliz. Ansiosamente, olhava, para a porta de entrada. Parecia esperar por alguém, alguém que tardava em aparecer. Mas, de repente, seu rosto ilumina-se com um sorriso, e a mãe de Dora, que a essa altura, já se encontrava bastante apreensiva com o desânimo da filha, percebe a mudança. Volta-se para onde a jovem olha com tanto interesse, e o que vê a deixa transtornada e mais ainda, quando Dora levantando-se, vai ao encontro do estranho que acabara de chegar. É um belo homem, moreno, alto, vestido de branco, com um elegante chapéu de panamá 2 na cabeça. Dona Francisquinha, assim se chamava a mãe de Dora, não se engana. Ela sabe quem ele é, e no desespero que lhe assalta, começa a gritar: 'É ele, é ele, o encantado, o excomungado, o maldito, o coisa ruim. Não, ajudem-me, ajudem-me, não deixem que ele leve a minha menina! Minha filha, minha filhinha... Acordem, por favor, acooordem'.
Sai correndo, esbarrando nos casais, que nem dão conta do que está acontecendo. A música, cada vez mais alta, impede que dona Francisquinha se faça ouvir. Ninguém a escuta nem o marido, o pai de Dora, pescador dos bons, respeitador das leis da natureza, parece compreender o que se passa. Continua encostado a um canto, pitando o cigarrinho de palha, indiferente a tudo. O povo está enfeitiçado e dona Francisquinha, isolada em sua aflição, cai, derrotada enquanto Dora, a linda Dora, rodopiando nos braços do estranho, vai, cada vez mais para longe da proteção de sua mãe.
O baile continuou noite adentro, era tão grande o encantamento, tão boa a diversão que ninguém sentiu a terra cedendo; afundando, afundando, afundando, até ser completamente coberta pelas águas. Somente dona Francisquinha, num derradeiro esforço, conseguiu salvar-se e aqui ficou, sem afastar-se dessas margens, sempre à espera de Dora. Porém, Dora não mais voltou. Apenas ele, o maldito, aprecia para fazer troça de dona Francisquinha e ela, tomada de fúria sobre-humana, entrava n'água, e tentava matá-lo, mas ele, o maldito, o excomungado, o coisa ruim, nadando numa velocidade fabulosa, facilmente escapava-lhe. Deitando água pelo furo que há em sua cabeça, era como se gargalhasse daquela que achava que podia enfrentá-lo.
E dona Francisquinha, cansada, nadava de volta às margens, onde se sentava, esperando a noite cair. E quando escurecia, lá embaixo o baile recomeçava, com Dora toda de branco, eternamente na flor de seus quinze anos, dançando nos braços do boto''.
Assim que terminou de contar-me a estória, meu pai me disse: “Filha; preciso ir. Logo será noite, e não é bom que a escuridão te surpreenda aqui sozinha. Dizem que até hoje a cidade submersa festeja a chegada de algum visitante”. Deu-me um beijo e desvaneceu-se na luz dos últimos raios de sol.
Eis que um barulho chama-me de volta à realidade. Na outra margem, o turista de chapéu já não está. De dentro d'água salta um boto brincalhão; espirrando água pelo furo. Engraçado! Parece uma despedida, com se estivesse dizendo-me adeus, como se soubesse que está sem lar; com igarapés e rios poluídos, sem belas cachoeiras e sem velhas estórias.
Por um momento, sinto-me como dona Francisquinha, desesperada por não conseguir salvar o que ama, sentada para sempre nestas margens, esperando o retorno do que não mais podia retornar.
O boto seguiu no rumo da cachoeira, levando consigo meus lugares de infância, o amor de meu pai e as velhas estórias. Lembranças que logo despencariam cachoeira abaixo.
Segui o conselho de meu pai e parti antes do anoitecer, levando nas mãos o chapéu branco que o turista, talvez por distração, deixara cair na água e que o boto em sua brincadeira trouxera para junto de mim. Prestes a entrar no carro, julguei ter ouvido algo; mas, longe, muito longe, parecia música?
E por que não! Quem sabe, fosse somente o recomeço do baile na cidadezinha submersa em que Dora morava, eterna menina-moça, ou então, fosse apenas o suave barulho da cachoeira que, a despeito de tudo, ainda conseguia cantar.
1 boto; (Inia geofrensis-Boto branco); (Steno tucuxi-Boto vermelho); cetáceo delfinídeo do gênero Sotália. Golfinho popular em toda a bacia Amazônica. É também chamado de PIRAIAUARA, ou peixe-cachorro. Contam as lendas que o boto é um doutor em assuntos do coração, gabando-se de ser o pai dos curumins, dos quais não se sabe, com certeza, a descendência. O povo diz que o boto branco é amigo dos náufragos, e que o boto vermelho, ou segundo Jacques Costeau, boto cor de rosa, denominado pelos índios de UIARA (“Senhor das Águas”) é o grande sedutor, aquele que não perdoa moça bonita que anda sozinha pelos barrancos em noites de luar. (Altino Berthier Brasil; Coisas de Boto; pág. 91; Amazônia Legendária; Poesanato, Arte e Cultura).2 panamá: Chapéu leve feito com tiras de folhas de um arbusto semelhante a palmeira.
Um comentário:
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