Todo mundo estranhou o jeito calmo de Raimundo. Era sempre tão nervoso; tão ansioso. Trabalhava duro. Queria ficar rico. De tanta ambição, Raimundo começou a modificar-se. Quem te viu e quem te vê! Largou os amigos e só pensava na realização de seus desejos mundanos: casa bonita com piscina, viagens pro estrangeiro, carro do ano, mulheres e mais mulheres. Por isso é que estranharam quando Raimundo voltou a freqüentar o velho bar do Osmar, onde podia encontrar todos os fins de tarde aqueles que; um dia, começara a esquecer.
Chegou; lépido e festeiro, como quem havia tirado um enorme peso de cima dos ombros. Pediu sua cervejinha com um pratinho de tira-gosto e sentou-se à mesa junto aos outros.
“O que te aconteceu Raimundo. Não era hora de estares trabalhando?”.
“Que trabalho o quê João. Eu agora vivo assim, de cara pra lua ou pro sol. Não quero saber mais de nada. E olha, sabe a tua dívida...?”
“Eu sei Raimundo, que ainda te devo, mas pretendo pagar”...
“Espera, homem! Nem acabei de falar; pois bem, a tua dívida está perdoada. O que eu quero mesmo são meus amigos de volta, tomar as minhas cervejas e apreciar o pôr-do-sol. Enfim, sossego. Quero sossego. Amigos, eu estava à deriva. Não há nada pior que confundir os meios com o fim”.
“Mas, o que é que te deu?” Perguntaram os outros, a uma só voz”.
“Vou contar. Aconteceu algo fora de série comigo, mas ouçam, o acontecido pouco importa já que tudo é passível de acontecer. Importante mesmo é o significado desta aventura que me fez ver a vida com outros olhos. Prestem atenção e vejam se não é coisa de doido”.
“Outro dia, cansado de tanto trabalhar, arrumei minhas tralhas de pesca e sai na pequena lancha que uso para estas ocasiões. Saí meio que sem rumo, adoidado, não pra muito longe. Eu estava começando a ficar acabrunhado. Os negócios; que iam bem, me deixaram ranzinza, pesado, obsessivo e desalentado. Só pensava em fazer dinheiro e me divertir. Sentimentos ruins, mesquinhos, começaram a tomar conta de mim, - tanto é que me esqueci o quanto era bom estar aqui com vocês - mas, acreditem ou não lutava contra isso. Então, larguei tudo naquele dia. Parei a lancha no meio do rio. Acontece que não tive paciência para pescar. Acabei me recostando, puxei o chapéu e tirei uma soneca”.
“Quando acordei, já era tarde, mas me incomodei. Estava tudo calmo demais”.
“A noite caíra e a lua; de bubuia, lançava sobre a escuridão delicados fios de prata”.
Apesar deste quadro magnífico que a natureza me oferecia, tive medo, pois para mim, só havia escuridão; a escuridão da noite; a escuridão da água e a escuridão de meu coração, esta mais tenebrosa e profunda que as outras. Meu Deu como ansiava pelo sol! Súbito um banzeiro leve; depois outro mais forte, e em seguida, o que vi jamais vou esquecer. De dentro d’água uma enorme cobra preta se levantou; seus olhos possuíam uma luz sobrenatural; uma luz amarela; cegante; apavorante. Não acreditei...Eis que diante de mim surgia a Boiúna, com chifre e tudo. Tremia sem parar; nunca tive tanto medo na vida. Em questões de segundo; vi a cobra engolir a lua. Seria mesmo verdade aquilo que estava vendo?; Ou seria apenas um surpreendente sonho maléfico?; Julguei que estava ficando louco, porém, uma segunda ondulação me fez acreditar e subitamente; ela abriu a bocarra e me engoliu também, com lancha e tudo. Fui escorregando garganta abaixo, até, finalmente, perder a consciência”.
Dentro da barriga daquele ser hediondo, dormi o sono da morte, tranqüilo e eterno. Quanto tempo durará a eternidade? Um segundo, uma vida inteira? Não sei dizer; não sei também porque ela me vomitou. Talvez restasse em minha essência algum tempero nocivo para o seu não muito exigente paladar.
Fui lançado no fundo do rio, e quando voltei à superfície, percebi que para salvar minha vida teria que lutar. Foi aí que me lembrei do punhal de prata presente de meu avô, de lâmina mais que afiada. Rezei para as forças não me faltarem. Mas, como acabar com um bicho daquele tamanho?
Aproveitando-se deste ligeiro instante de indecisão, pois vocês todos são testemunhas de que não desenvolvi este mau hábito, a maldita me pegou no seu abraço mortal, senti os ossos estalarem e comecei a gemer de dor. Não conseguia reagir. Entretanto, para minha sorte, ela afrouxou o abraço e rapidamente, puxei o punhal de minha cintura. Estava novamente, bem próximo à sua boca e podia sentir seu hálito quente e pestilento. Um arrepio gelado percorreu minha espinha. Era ela ou eu, e é lógico que optei por mim. Sem vacilar, com a mão segurando firme o cabo do punhal, enterrei-o em sua garganta, em seguida um outro golpe, depois outro, outro, outro e mais outro... Subitamente, os olhos, esbugalhados, voltaram-se para mim; não fugi; não chorei; não temi ficar cego ou ser consumido vivo; por aquela maldita luz. Estava desesperado e queria apenas sobreviver. O silvo lancinante que soltou fez a floresta inteira tremer. Ao longe pude ouvir o revoar de pássaros e os urros dos animais amedrontados. A Boiúna largou-me no mesmo instante e num segundo desapareceu nas profundezas das águas. Do meio do rio, nadei feito um condenado, torcendo para que ela, mais que enfurecida, não retornasse disposta a uma vingança.
Ao alcançar a segurança da margem, caí, exausto de sono e de cansaço. Por fim, sobre esta estranha madrugada desceu nova quietação.
Na manhã seguinte, fui encontrado pelos meus empregados, que acharam que a pesca estava demorando demais. Acordei sentindo uma terrível dor de cabeça. Minha testa estava ferida e na mão ainda segurava o punhal.
Ao meu redor, tudo estava normal outra vez, mas não igual. O banzeiro, provocado pela passagem dos barcos, os botos nadando ao longo do rio, a arara vermelha atravessando o céu, os gritos dos macacos, perdendo-se à distância. Tudo estava normal, mas não igual. Eu havia travado uma batalha e conquistado um troféu, um troféu que eu não poderia levar pra casa para enfeitar a minha sala ou para exibir pros amigos. Era um troféu merecido, resultado de uma guerra particular travada dentro e fora de mim. Isso tudo porque passei, gerara um homem novo, filho do sol e da lua. Um guerreiro com forças suficientes para combater e matar o seu dragão. Acreditem ou não, eu lutara comigo mesmo, lutara contra os pérfidos sentimentos que queriam me possuir. Percebi que tudo aquilo pelo qual ansiava, se não tomasse cuidado!... Meus desejos eram como a grande cobra a me envolverem num abraço mortal. Acreditem ou não, resolvi dar-me uma chance e, graças a Deus, estou aqui, renascido; livre e feliz sob este novo céu, sob este novo sol, sob esta nova lua, bem distante da goela e da barriga escura e fedorenta dos meus desejos mais delirantes.
Do livro Moronetá-Crõnicas Manauaras, Virgínia Allan, Editora Valer
Chegou; lépido e festeiro, como quem havia tirado um enorme peso de cima dos ombros. Pediu sua cervejinha com um pratinho de tira-gosto e sentou-se à mesa junto aos outros.
“O que te aconteceu Raimundo. Não era hora de estares trabalhando?”.
“Que trabalho o quê João. Eu agora vivo assim, de cara pra lua ou pro sol. Não quero saber mais de nada. E olha, sabe a tua dívida...?”
“Eu sei Raimundo, que ainda te devo, mas pretendo pagar”...
“Espera, homem! Nem acabei de falar; pois bem, a tua dívida está perdoada. O que eu quero mesmo são meus amigos de volta, tomar as minhas cervejas e apreciar o pôr-do-sol. Enfim, sossego. Quero sossego. Amigos, eu estava à deriva. Não há nada pior que confundir os meios com o fim”.
“Mas, o que é que te deu?” Perguntaram os outros, a uma só voz”.
“Vou contar. Aconteceu algo fora de série comigo, mas ouçam, o acontecido pouco importa já que tudo é passível de acontecer. Importante mesmo é o significado desta aventura que me fez ver a vida com outros olhos. Prestem atenção e vejam se não é coisa de doido”.
“Outro dia, cansado de tanto trabalhar, arrumei minhas tralhas de pesca e sai na pequena lancha que uso para estas ocasiões. Saí meio que sem rumo, adoidado, não pra muito longe. Eu estava começando a ficar acabrunhado. Os negócios; que iam bem, me deixaram ranzinza, pesado, obsessivo e desalentado. Só pensava em fazer dinheiro e me divertir. Sentimentos ruins, mesquinhos, começaram a tomar conta de mim, - tanto é que me esqueci o quanto era bom estar aqui com vocês - mas, acreditem ou não lutava contra isso. Então, larguei tudo naquele dia. Parei a lancha no meio do rio. Acontece que não tive paciência para pescar. Acabei me recostando, puxei o chapéu e tirei uma soneca”.
“Quando acordei, já era tarde, mas me incomodei. Estava tudo calmo demais”.
“A noite caíra e a lua; de bubuia, lançava sobre a escuridão delicados fios de prata”.
Apesar deste quadro magnífico que a natureza me oferecia, tive medo, pois para mim, só havia escuridão; a escuridão da noite; a escuridão da água e a escuridão de meu coração, esta mais tenebrosa e profunda que as outras. Meu Deu como ansiava pelo sol! Súbito um banzeiro leve; depois outro mais forte, e em seguida, o que vi jamais vou esquecer. De dentro d’água uma enorme cobra preta se levantou; seus olhos possuíam uma luz sobrenatural; uma luz amarela; cegante; apavorante. Não acreditei...Eis que diante de mim surgia a Boiúna, com chifre e tudo. Tremia sem parar; nunca tive tanto medo na vida. Em questões de segundo; vi a cobra engolir a lua. Seria mesmo verdade aquilo que estava vendo?; Ou seria apenas um surpreendente sonho maléfico?; Julguei que estava ficando louco, porém, uma segunda ondulação me fez acreditar e subitamente; ela abriu a bocarra e me engoliu também, com lancha e tudo. Fui escorregando garganta abaixo, até, finalmente, perder a consciência”.
Dentro da barriga daquele ser hediondo, dormi o sono da morte, tranqüilo e eterno. Quanto tempo durará a eternidade? Um segundo, uma vida inteira? Não sei dizer; não sei também porque ela me vomitou. Talvez restasse em minha essência algum tempero nocivo para o seu não muito exigente paladar.
Fui lançado no fundo do rio, e quando voltei à superfície, percebi que para salvar minha vida teria que lutar. Foi aí que me lembrei do punhal de prata presente de meu avô, de lâmina mais que afiada. Rezei para as forças não me faltarem. Mas, como acabar com um bicho daquele tamanho?
Aproveitando-se deste ligeiro instante de indecisão, pois vocês todos são testemunhas de que não desenvolvi este mau hábito, a maldita me pegou no seu abraço mortal, senti os ossos estalarem e comecei a gemer de dor. Não conseguia reagir. Entretanto, para minha sorte, ela afrouxou o abraço e rapidamente, puxei o punhal de minha cintura. Estava novamente, bem próximo à sua boca e podia sentir seu hálito quente e pestilento. Um arrepio gelado percorreu minha espinha. Era ela ou eu, e é lógico que optei por mim. Sem vacilar, com a mão segurando firme o cabo do punhal, enterrei-o em sua garganta, em seguida um outro golpe, depois outro, outro, outro e mais outro... Subitamente, os olhos, esbugalhados, voltaram-se para mim; não fugi; não chorei; não temi ficar cego ou ser consumido vivo; por aquela maldita luz. Estava desesperado e queria apenas sobreviver. O silvo lancinante que soltou fez a floresta inteira tremer. Ao longe pude ouvir o revoar de pássaros e os urros dos animais amedrontados. A Boiúna largou-me no mesmo instante e num segundo desapareceu nas profundezas das águas. Do meio do rio, nadei feito um condenado, torcendo para que ela, mais que enfurecida, não retornasse disposta a uma vingança.
Ao alcançar a segurança da margem, caí, exausto de sono e de cansaço. Por fim, sobre esta estranha madrugada desceu nova quietação.
Na manhã seguinte, fui encontrado pelos meus empregados, que acharam que a pesca estava demorando demais. Acordei sentindo uma terrível dor de cabeça. Minha testa estava ferida e na mão ainda segurava o punhal.
Ao meu redor, tudo estava normal outra vez, mas não igual. O banzeiro, provocado pela passagem dos barcos, os botos nadando ao longo do rio, a arara vermelha atravessando o céu, os gritos dos macacos, perdendo-se à distância. Tudo estava normal, mas não igual. Eu havia travado uma batalha e conquistado um troféu, um troféu que eu não poderia levar pra casa para enfeitar a minha sala ou para exibir pros amigos. Era um troféu merecido, resultado de uma guerra particular travada dentro e fora de mim. Isso tudo porque passei, gerara um homem novo, filho do sol e da lua. Um guerreiro com forças suficientes para combater e matar o seu dragão. Acreditem ou não, eu lutara comigo mesmo, lutara contra os pérfidos sentimentos que queriam me possuir. Percebi que tudo aquilo pelo qual ansiava, se não tomasse cuidado!... Meus desejos eram como a grande cobra a me envolverem num abraço mortal. Acreditem ou não, resolvi dar-me uma chance e, graças a Deus, estou aqui, renascido; livre e feliz sob este novo céu, sob este novo sol, sob esta nova lua, bem distante da goela e da barriga escura e fedorenta dos meus desejos mais delirantes.
Do livro Moronetá-Crõnicas Manauaras, Virgínia Allan, Editora Valer
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