Nelinho ajeitou o cabelo, puxou a blusa, deixando-a meio dentro, meio fora da bermuda, calçou os chinelos, saiu do quarto, abriu a porta, e, mal respondendo a pergunta da mãe, dirigiu-se a casa em frente. Com cuidado, rodeou-a e entrou pela janela aberta.
Ela já estava à espera em cima da cama, metida numa lingerie sexy, vermelha como sangue e mal esperou que Nelinho tirasse a roupa. O prazer do proibido é tanto maior quanto maior o perigo.
Elisa era casada com um sujeito trabalhador e meio marrento, um empresário de sucesso no ramo dos livros. Não era infeliz, mas gostava de abusar de seus atributos físicos e mentais, pois além de bonita era inteligente e como quase toda pessoa inteligente e narcisista, subestimava a inteligência de quem supunha estar a enganar.
Os comentários do romance entre Nelinho e Elisa, correram soltos e acabaram por chegar aos ouvidos do marido, que era corno-manso não por vontade própria, mas apenas por nada saber... Bom, até aquele momento... Não era a primeira vez que ouvia sobre Elisa esse tipo de comentário, claro que nunca comprovados posto que jamais fizera caso, entretanto, desta vez, “uma pulga atrás da orelha” estava a importuná-lo. Se tudo fosse verdade, o caso estaria com os dias contados. Debaixo de suas fuças, Elisa, nem ninguém, nenhum sujeitinho de m... iria fazê-lo de trouxa.
Pensando em dar o flagra, fez o que todo marido enganado costuma fazer. Disse que ia passar o dia todo fora e só voltaria ao anoitecer. Em vez disso, esperou na esquina, fingindo tomar um café. Quem o via ali, muito desconfiava o que estava prestes a acontecer e ficavam por perto, ressabiados, prontos para a consumação dos fatos.
Elisa foi que nem desconfiou de nada. Notara a mudança de humor e os olhares sombrios do marido, mas nada que abalasse sua fatal confiança em si mesma. Geraldo era assim de nascença. Conhecia-o bem. Cego de espírito, por isso tinha aquele jeito de olhar carregado, esquisito. Desde que o caso com Nelinho começara desdobrara-se em carinhos e cuidados com o marido, mas nada de consciência pesada, agia dessa maneira justamente pra não levantar suspeitas.
Bom, quanto aos buchichos da vizinhança (estava ciente deles) nada poderia fazer e depois ninguém podia provar nada. Caso chegasse aos ouvidos de Geraldo e ele viesse lhe perguntar, sorriria daquele jeito só seu e diria que era inveja, já que, por aquelas bandas nenhum homem tinha mulher mais bonita que a dele. Acontecera isso antes e Geraldo, graças a Deus, engolira a mentira e além do mais, não era homem de dar ouvidos aos boatos. O dito “onde há fumaça há fogo” só se aplicava aos negócios, nunca à vida prática.
Pensando assim, Elisa largou-se sem preocupações a enfeitar a cabeça do marido. Nelinho, seu jovem amante, não era pra qualquer uma. Era um deus grego. Forte, alto, saudável, louro... enfim, um deus. Quem, em sã consciência, e amadurecimento sexual, deixaria um cara como esse escapar...
Elisa possuía um furor que Geraldo não era mais capaz de conter. Elisa precisava algo mais do que amor. Elisa precisava de satisfação, com alguém satisfeito é mais fácil de se conviver, satisfação gera felicidade; felicidade pra ela, pra Geraldo e pra quem mais estivesse ao redor. Ser/estar feliz era a sua meta, a sua ambição e ser/estar feliz viria da satisfação. A vida era muito curta, então ela curtia a vida pra valer. Não queria o fim de seu casamento, queria apenas satisfação, estando satisfeita, Geraldo ficaria satisfeito também e tudo estaria sempre bem.
Nelinho por sua vez, oportunista nato, era o herói da turma por esta última façanha, Elisa era mulher troféu de deixar qualquer um com água na boca, precisando de babador. Nelinho enredou-se na aventura, mas pelo gosto de proibido, pra se mostrar pros amigos, do que propriamente pela paixão ou os atributos físicos de Elisa. Era bom pegar o que era de outro, claro, sem o outro saber... um cleptomaníaco de emoções e sentimentos humanos. Outros dariam nomes menos românticos, como, por exemplo, traição.
Nelinho e Elisa deleitavam-se nos prazeres da carne, entre gemidos e gritos que, Geraldo, do canto em que estava podia ouvir. Era vergonhoso demais.
Sem mais esperar, saiu do bar feito um louco e rumou para casa onde meteu o pé na porta, rapidamente dirigindo-se ao quarto.
Nelinho e Elisa assustaram-se com a súbita interrupção e olharam para Geraldo que, de arma em punho tencionava “lavar a honra com sangue” e foi o que fez. Disparou tiros, que foram, pelo menos dois, certeiros em Elisa, os outros perderam-se na intenção de matar Nelinho.
Nelinho, sem questionar a sorte de plantão, pegou a blusa e correu, nem tendo tempo de pegar a bermuda que ficara jogada em cima do criado mudo. Correu, mas não encontrava saída. Foi para a cozinha, onde uma cancela de madeira era a única barreira a separá-lo da liberdade.
Geraldo correu também, atrás do jovem e alcançou-o... largando a arma, que estava sem balas, pegou a faca peixeira do faqueiro em cima da pia e antes que Nelinho pudesse pular ou abrir a cancela, acertou- lhe uma facada nas costas. Nelinho caiu, enfraquecido pelo golpe, com o peito exposto, Geraldo desferiu-lhe mais uma facada, direto no coração.
Assim morreu o jovem deus grego, que era uma lenda entre os seus. Morreu aos 18 anos, por um capricho, nu, da cintura para baixo, no soalho da cozinha de um marido traído.
Elisa não morreu. Ficou paralítica da cintura pra baixo.
Geraldo foi levado a julgamento, mas absolvido pela alegação de que “matara em legitima defesa da honra”. Naquele tempo ainda se usava, e se aceitava, tal alegação.
Pouco tempo depois, Geraldo e Elisa tornaram a voltar, tornaram a viver juntos, outra vez como marido e mulher.
Do livro O OFÍCIO DO CONTADOR DE HISTÓRIAS (Gislayne Avelar Matos/Inno Sorsy)
Elas contaram e eu torno a contar...
Era uma vez um viajante que caminhava pelo grande deserto de neve. Tudo era imenso, triste, solitário.
O viajante parou para descansar um pouco à beira do caminho e pensava, exausto: "Devo chegar antes do anoitecer à primeira aldeia deste deserto gelado."
Como se sentia fatigado, fechou os olhos por alguns minutos, mas logo foi despertado por uma voz estranha, um pouco distante, porém, infinitamente penetrante, que lhe disse: "Você está muito cansado. Venha comigo e repouse um instante. Todo viajante descansa em meu palácio."
A voz era de velho muito velho, talvez até mais que centenário ou talvez até mais que milenar... Na verdade, ele não tinha cor nem idade, talvez fosse mais cinza que o céu de inverno ou talvez fosse mais branco que a neve.
O viajante olhou-o atentamente e viu que o velho tinha na testa um magnífico diadema real e, que, apesar da idade, possuía a força e a leveza da juventude.
"Entre em minha casa" continuou o velho "Meu palácio é mais rico e belo que o mais precioso de todos os palácios do mundo. Veja!"
O viajante, impressionado, viu aparecer dele um palácio que parecia de cristal. Através de seus muros transparentes e brilhantes, podiam-se perceber tesouros inesquecíveis, flores de beleza indescritível, pedras preciosas que reluziam em todas as paredes. O palácio cintilava! E o viajante, ainda pasmo, perguntou: "Que riquezas são estas? Poder-se-ia compra o mundo todo com o que possuís, ó Rei!
O velho simplesmente sorriu e respondeu: "É fato, viajante. Aqui há tesouros de tal valor, que poderiam comprar o mundo. Estas flores e estas pedras preciosas que você vê são as únicas verdadeiras riquezas do mundo: são as ideias do mundo. Quando uma ideia já viveu seu tempo, eu a recolho em meu reino. Aqui, ela dorme o sono do gelo, para recuperar o brilho e a beleza que perdeu entre as pessoas. E ela dorme até o momento em que seu destino esteja pronto para novamente se cumprir, até o momento em que uma alma humana deite seu olhar sobre ela com um pouco de amor. Então com o calor da respiração dessa alma, o gelo se derrete e a ideia volta a viver, jovem e cheia de força. E todos no mundo gritam em torno dela: 'Eis uma nova ideia!' Mas estão enganados: a ideia não é nova, ela já existia, entretanto, como seus ancestrais a rejeitaram com desprezo, ela adormeceu no palácio de gelo. Contudo, ai do homem que desperta um ideia forte, será infeliz, uma vez que possuído por ela, jamais será o seu senhor."
"Onde está vosso palácio, Rei? Em que país habita Vossa Majestade? Onde fica o vosso reino?"
Mas o rei tornou a sorrir e nada respondeu.
Tudo ficou cinza diante do viajante, e seus olhos começaram a se esfumar. Ele tornou a perguntar: "Quem sóis vós, ó Rei?"
E de longe, escutou a compreensível resposta: "Eu sou o tempo".
Assim meu avô ouviu de seu avô que ouviu de seu avô
e assim vou contar:
Escuro, frio e silêncio. O começo de tudo.
Yo’ i e Ypi. cadê a luz?
Acima da árvore gigante.
Samaumeira, wotchine, esconde o mundo
Yo’i e Ypi querem ver o mundo.
Pegaram um caroço de araratucupi e tcha... um buraquinho na negra escuridão
E aí? Yo’i e Ypi? Cadê a luz?
Pra lá da escuridão, pra lá da copa da samaumeira, pelo buraco, dá pra ver
O quê? Yo’i e Ypi
Uma preguiça real que prende o céu com galhos da samaumeira.
Yo’i e Ypi pegaram mais caroços de araratucupi e tcha, tcha, tcha.. olha lá um montão de estrelas, mas nada de luz...
Yo’i e Ypi cadê a luz?
Hum, hum, hum.... os dois irmãos pensando.
Yo’i e Ypivão derrubar a samaumeira.
Chama, chama, chama todos os bichos pra ajudar
Vem lá macaco e cutia, boto, cobra, veado, tamanduá, jabuti, tracajá...
Não dá, não dá... samaumeira não cai; nem pica-pau consegue por wotchine abaixo.
E agora Yo’i e Ypi?
Hum, hum, hum.... os dois irmãos pensando.
Uma festa, uma festa de casamento
Aicüna, a irmã, será dada a quem fizer preguiça real soltar os galhos que prendem o céu
Nos olhos da preguiça real tem que jogar formigas-de-fogo. Quem vai?
Chegou Taine, um quatipuru bem pequeno, foi, mas no meio do caminho voltou.
Taine, o quatipuruzinho, tentou de novo. Desta vez, chegou. Jogou as formigas nos olhos da preguiça e a preguiça soltou os galhos que prendiam o céu e lá se foi a samaumeira...
Taine casou com Aicüna e do tronco da árvore caída brotou o rio Solimões e dos galhos espalhados, mais rios e muitos igarapés.
***
INDIOS TICUNA: do tronco lingüístico ticuna, segundo o Censo de 1984, se encontra espalhada pelos seguintes municípios do estado do Amazonas: Benjamim Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, e Santo Antônio do Içá, contando-se hoje a nação, em torno de 23.000 pessoas. Para eles uma árvore não é apenas uma árvore é muito mais é um símbolo da vida, acreditam que numa árvore está contida toda a memória do mundo.
Yo’i, Ypi e Aicüna são os irmãos primordiais, aqueles que através de suas ações, sendo a maior delas a derrubada da samaumeira, darão inicio ao mundo da forma que hoje o conhecemos.
Um dia lá bateu a porta da casa do Zé um compadre chegado do interior e para agradá-lo, o compadre lhe trouxe um pato e Zé, muito agradecido, mandou a mulher fazer um pato cozido. O compadre não demorou em sua visita e logo se foi arrepiando caminho de volta.
No dia seguinte, Zé acordou com novas batidas na porta. Era um amigo do compadre do Zé que tinha lhe trazido o pato.
Zé mandou que entrasse e lhe ofereceu o que comer.
Na manhã seguinte, novas batidas na porta... e novamente na manhã seguinte e outra vez na manhã da manhã seguinte.
A casa do Zé virou restaurante, ponto certo de quem vinha de fora da cidade, sempre um amigo do amigo do compadre do Zé que tinha lhe trazido o pato de presente.
A mulher estava para largar o coitado, pois já não agüentava mais viver na cozinha, quando novas batidas soaram na porta da casa do Zé e o estranho com a cara mais lambida do mundo se apresentou como o amigo do amigo do amigo do seu compadre que tinha lhe trazido o pato.
O Zé se apoquentou, mas mesmo assim mandou entrar o dito cujo. Sentaram-se à mesa e Zé pediu à mulher que lhes trouxesse a sopa.
O visitante já lambia os lábios e esfregava as mãos, pensando na delicia que logo saborearia, porém, mal deu a primeira colherada fez cara de desgosto: “Ó meu amigo, que tipo de sopa é esta? Isso não passa de água quente”.
“Ora, tá reclamando do quê?” disse o Zé tranquilamente. “Essa, meu amigo, é a sopa da sopa da sopa do pato que o meu compadre e parente me trouxe de presente”.
Era uma vez uma casa toda de pedra no fundo da floresta.
Esta é a casa toda de pedra no fundo da floresta.
Dentro da casa toda de pedra, no fundo da floresta vivia uma moça lavando louça.
Esta é a moça que vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta lavando louça que um dia se assustou com um rato apressado que pulou no armário.
Este é o rato apressado que pulou no armário e espantou a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
Veio um gato pegar o rato apressado que pulou no armário e espantou a moça que lavava louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
Este é o gato que veio pegar o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
Veio um cachorro zangado espantar o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e espantou a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
Este é o cachorro zangado que veio espantar o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
Veio o pastor atrás do cachorro zangado que espantou o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta.
O pastor viu a moça e se apaixonou...
Este é o pastor apaixonado que veio atrás do cachorro zangado que espantou o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta
O pastor apaixonado beijou a moça que vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta e esqueceu-se que veio atrás do cachorro zangado que espantou o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava louça.
A moça que vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta ao beijar o pastor lembrou-se do sonho doce que sonhava enquanto lavava a louça que desvaneceu ao assustar-se com o rato apressado que pulou no armário e foi pego pelo gato que se espantou com o cachorro zangado que latia sem parar chamando o pastor que viu a moça que vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta e por ela se apaixonou...
O pastor apaixonado beijou a moça e com ela se casou passando ambos felizes a viverem na casa toda de pedra no fundo da floresta em companhia do cachorro zangado que espantou o gato que pegou o rato apressado que pulou no armário e assustou a moça que lavava louça enquanto sonhava um sonho doce que enfim realizou-se...
Graças ao rato apressado que pulou no armário mas foi pego pelo gato que logo largou-o, pois espantou-se com a presença de um cachorro zangado que fugiu do pastor e este ao ir em seu encalço encontrou o seu amor que era a moça que lavava a louça e vivia na casa toda de pedra no fundo da floresta e que um dia enquanto lavava a louça sonhava um sonho doce que enfim realizou-se...
Era um sonho o mundo de Lilly. Mal amanhecia e a alegria começava no quintal, um verdadeiro estardalhaço... um colorido e feliz jardim zoológico com bichos de todos os tipos e tamanhos: Girafas, elefantes, cisnes, tigres, pássaros raros, avestruzes, galos, galinhas e até um pato, doído de amarelo, que grasnava alto e sem parar, um pato metido a besta, que não se reconhecia como pato, o coitado pensava que era gente... ai... se ele soubesse como era ser gente, preferiria permanecer na condição pato pateta(?)... pois é... havia de tudo no mundo mágico de Lilly. As tartarugas saiam do rio, repleto de peixes, que cortava o sitio e iam se secar ao sol, esparramadas nas pedras, bem quietas... o pescoço estendido para fora do casco, competiam com as iaras o carinho do sol.
Na frente da casa, era o passar cantante/constante do rio, onde peixes-bois, ariranhas e botos se divertiam, pescando contas e pequeninas pedras brilhantes como diamantes, ou seriam mesmo diamantes? E lá atrás um grande mar se espraiava barulhento, forte, debulhando-se em ondas ora verdes ora azuis, e, mar adentro bem no meio, o passeio sossegado de uma baleia e seu filhote... e ainda havia Romão, um bonito gato de pêlo alaranjado e olhos inacreditavelmente verdes; olhos que estão sempre arregalados, perplexos diante da complexidade do mundo... é um gato pensante?... filósofo?... não, Romão embora pense e chegue as variadas conclusões, é, em verdade, um gato sábio. Alguém duvida de que possa existir sabedoria entre os bichos? Alguém duvida que bicho pensa? Se duvida... é porque não conhece bicho, muito menos um gato chamado Romão...! E depois, quem de nós acredita que tudo sabe é tão deprimente quanto aquele que diz nada saber... Romão persegue um pote de ouro no fim do arco-íris, e as coloridas borboletas no fundo do quintal... certa vez, capturou uma lagartixa que andava a aterrorizar o reino das formigas, mas que belo dragão! Romão ficou satisfeito...
Neste mundo mágico tecido pela imaginação fértil e feliz de uma criança, não havia espaço para qualquer tipo de tristeza... ai, se elas ousassem se insinuar...
Mas, o mundo mágico de Lilly e mesmo ela, estão contidos dentro de uma gaveta, na casa velha de um velho poeta, que abranda a solidão, tirando essas coisas da cachola... pondo no papel pedaços de sonhos.
Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas.
Uma orquídea crescia no tronco da árvore mais alta de um jardim... Um jardim sombrio, um tanto estranho, de pouco encanto... Em meio à profusão de folhas, frutos, flores, sementes e raízes espalhadas por todo o chão, certamente não se perceberia a beleza de sua presença, se não fosse a presteza de um raio de sol brincalhão que, certa vez, na graça de um dia incomum, em que o astro-rei, luzia poderoso, soberano em todo o seu esplendor, caíra, perdido, por entre as pétalas macias da bela flor, lá adormecendo, em puro sossego.
Na manhã seguinte, em vez do sol, veio a chuva... E o raiozinho, assim tão bruscamente despertado, fugiu assustado, desaparecendo, num instante por detrás das cinzentas e carregadas nuvens... mas, na pressa, eis que sacudiu de si um halo de luz, que, magicamente, se estendeu sobre o jardim sombrio; halo de límpida e dourada luz, que a violência da chuva não ousou levar.
Dona Lídia era a calma em pessoa e, por demais católica, temente a Deus, a exemplo de São Francisco, resignava-se diante das situações que não conseguia mudar, o que equivale a dizer uma vida atribulada, seis filhos e um marido insensível. Mas, não havia nesse mundo nada que a abalasse, D. Lídia em vez de Lídia, devia chamar-se “Amélia, a mulher de verdade” que nem a canção do Ataulfo Alves e letra de Mário Lago... marido chegava bêbado, xingando Deus e o mundo, lá estava ela, a postos, pronta a tirar-lhe a roupa, as meias, os sapatos e ainda colocá-lo na cama, limpa e arrumada, ao mesmo tempo, balbuciando uma oração, a pedir perdão por ele, seu tosco marido, por citar o Seu Santo Nome em vão... Se as crianças aprontavam, Dona Lídia sorria ou fingia-se de brava a impor respeito... O marido, mau-humorado até a unha do dedão do pé, que detestava ser perturbado, levantava do seu sossego, brigava, e até metia a peia nas coitadinhas... mas ela, Dona Lidia, não... não brigava com ele... nem com as crianças, nem com ninguém! Esperava com paciência a tempestade dos humores passar... não se intrometia nos castigos impostos aos filhos, há não ser ser em última instância.
Aos domingos, nunca faltava à missa e quando voltava para casa, comungada de alma lavada, e livre dos pecados, absolvidos na confissão, estava pronta para qualquer situação. Era inconcebível para quem estava do lado de fora da vida de Dona Lídia, compreender tanta resignação / mortificação. Mulher bonita ainda, de cabelos negríssimos custava-se a entender porque agüentava aquela vida. Ela sorria, brincava, cantava, mas de uma coisa todos tinham certeza; ela não era feliz... não poderia ou então não sabia o que era felicidade... E o que vem a ser essa tal felicidade? De uma forma ou de outra, fato é que essa mulher que se dizia feliz, apaixonada por seu marido, sua casa e seus filhos, resignada, católica praticante, temente a Deus e submissa à Sua vontade, adoeceu gravemente e nenhum médico conseguiu fazer um diagnóstico correto. Sofria de uma doença degenerativa que a fazia arrastar-se, dependendo da caridade dos filhos ou dos vizinhos para poder se alimentar...O marido já nem se dava ao trabalho, agora mais do que nunca, não parava em casa, e, nem assim, acreditem ou não, se ouviu ela o maldizer, ou levantar a voz para reclamar como injusta sua difícil situação. . . Foi-se D. Lidia, foi-se o marido, foi-se uma das filhas, que, matou-se num domingo de sol... foi-se o tempo desta história? Dona Lídia morreu jovem, se foi mártir, santa, acomodada, condicionada, feliz ou infeliz, eu não o sei dizer e ouso pensar que talvez nem a própria Dona Lídia o soubesse... De-lhe o céu a desejada recompensa, seja ele o seu mais justo e fiel juiz.