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sexta-feira, 6 de junho de 2008

MESTRE TATÁ E UMA HISTÓRIA DA FLORESTA

Conversa fiada, todos sabiam que era, mas não tinha um que não largasse, fosse lá o que estivesse fazendo, para ouvir o que mestre Tatá tinha a contar. Era só dar o ar de sua graça no antigo armazém, que logo aparecia diante dele como num passe de mágica, o copo de café com leite e um pratinho com tapioca salgada, pupunha e tucumã. Tudo muito limpo e arrumado, somente para contentar o velho contador de histórias.

Manhãzinha, sob o sol fresquinho, de paletó branco, chapéu e sapato fechado, vinha ele, muito elegante, apoiando sua bengala de marfim (resquício precioso de um passado de venturas) na rua sem calçamento. Chegava, recostava-se na cadeira, tirava o chapéu e calmamente fazia o desjejum.

O povo, atento a cada gesto, esperava, esperava... Todavia, se acaso ele se demorava na apreciação do repasto, alguém mais ansioso danava a falar e a fazer perguntas: “E aí, mestre Tatá? Tudo bem com o senhor? E dona Aurora? Os filhos, como é que vão? Com a misericórdia do Homem lá de cima hão de estar todos bem, não! Assim Ele queira. E, é claro que Ele quer, pois, gente boa igual ao senhor e dona Aurora não se encontra fácil, não. Mas, Mestre Tatá como é mesmo aquela história do encontro com o Curupira? Já forcei o pensamento, mas não teve jeito... Sabe como é, né?!... O tempo passa, põe prata nos cabelos e tudo fica escuro, confuso. Quero me alembrar para poder contar pros netos. O senhor nem imagina como aqueles guris gostam de ouvir uma história, e quanto mais atrevida, melhor”.

“Olhe, amigo Tonho, nem Curupira, nem Saci-Pererê”. Disse mestre Tatá, sorvendo uns goles do café com leite e tratando de descascar o tucumã. "Atrevido foi o Caipora com quem topei na última caçada que fiz, ainda nos meus tempos de moço, quando tinha forças nos braços e nas pernas e coragem para me embrenhar por dentro da floresta que conhecia como a palma de minha mão, melhor que muito mateiro... Passava dias e dias, caçando, colhendo frutos sem sentir falta de gente e sem temer assombração. 

Foi por essa época, que perdi o gosto de matar bicho; não por medo daquela coisinha ruim, é que acho covardia mesmo, mas nem sempre pensara assim e daquela vez, matei um macaco. O coitado parece que sabia que ia morrer. O bicho mexia as mãos; tapava os olhos, num gesto misto de defesa e pedido de comiseração. Daquela vez, fato do qual me arrependo até hoje; cedi aos maus instintos; mirei e atirei, ele caiu duro, estatelado no chão. Então, me aproximei e virei o bicho... Para minha surpresa, era uma macaca, que, ao pressentir o perigo; escondera a cria entre os arbustos que havia aos pés da árvore de samaúma. Não tivera tempo, a coitada, de subir e fugir com seu filhote para os galhos mais altos. 

Ao dar-me conta da insensatez de meu ato, afirmo e reafirmo, e não sinto vergonha disso, pus-me a chorar. O animalzinho indefeso pulou para cima de sua mãe, procurando animá-la a levantar-se, era de dar dó no coração e nó na garaganta. Porém percebendo que de nada adiantava, olhou-me, com uns olhos assim, graúdos e tristes, e, sem que eu esperasse, subiu para o meu colo. 

Penalizado, prometi diante do cadáver de sua mãe, cuja vida havia tirado sem quê nem pra quê, cuidar e amar o bichinho com o máximo de atenção e carinho. Não comi sua carne; enterrei-a como se enterrasse gente, como se enterrasse um amigo, com direito à oração e tudo. Podem até pensar que foi um despropósito, mas vocês hão de convir, que precisava aliviar a dor que me roía o coração.

Depois, segui com o macaquinho para acampar em outro rincão. Entretanto, o besta do Caipora não levou em consideração o meu arrependimento e naquela mesma noite o danado veio no meu rasto. Esse gênio da floresta é feio de doer, é um ser escuro, bem escurinho, rápido como uma onça, têm cabelo espetado, olhos em brasa e na boca, um pito...”

“Mas, aí, mestre Tatá, pelo que o senhor descreveu, era um Saci!”.

“E quem tem cabeleira hirta, é o Curupira”.

“Já falei que nem Saci nem Curupira! O Caipora é algo assim entre os dois... Como estava dizendo antes de ser interrompido...” (e nessas horas mestre Tatá fazia cara de muxoxo), “uma coisa que espanta Caipora é a claridade. Vixe...! quer ver ele correr? É só o caboco acender uma tocha ou fazer uma fogueira, que o 'corajoso' perde a coragem e não chega junto, não. Porém, azar o meu... desdenhara das artes dos índios de fazer fogo porque sempre carregava comigo, aonde quer que fosse, o meu lampião, mas, naquele fatídico dia, do qual, fique claro, me arrependo até hoje, esqueci-o ao pé da samaúma. Não tinha fumo e nem pinga, pois a sacola que carregava com todos os meus pertences, desaparecera como que por encanto. Acho que todos os seres da floresta haviam se juntado aquela noite só a fim de me punir. Assim, pensei eu, lá com os meus botões: ‘E agora? Caso perdido! O Caipora vai acabar comigo. Se eu sair daqui vivo, vou ficar panema1 até o fim de meus dias”.

O macaquinho também estava com medo. Assustado, se agarrava ao meu pescoço e guinchava baixinho. Foi aí, que de dentro da escuridão da mata, ouvi o barulho ensurdecedor das patas do caititu, correndo em disparada sob o estalo da vara de japecanga e eu, que sou homem de não se intimidar à toa, senti o sangue congelar nas veias ao ouvi-lo gritar: ‘Ahohó, ahohó, ahohó!...’

“Ah! Vai me desculpar outra vez mestre Tatá; mas quem monta porco do mato é Matintapirera”.

“Isso é que não! Quem monta porco do mato, grita deste jeito; agitando uma vara de japecanga 2 é o Curupira 3 e quer saber? Desde quando Caipora 4 passeia por estas bandas?”.

“Haja paciência! Ora, desde quando, desde quando? Desde sempre! Onde existe mato, existe Caipora, e já disse a vocês e vou tornar a dizer: nem Curupira nem Saci. Ca-i-po-ra, Caipora, que é algo assim entre os dois. De Matintapirera 5 não quero nem ouvir. Agora, se alguém tornar a confundir Caipora com Curupira e Saci 6; Saci com Curupira e Caipora; Curupira com Caipora e Saci; se, por causa disso, voltar a me interromper; vai levar uma sova de bengala”.

Diante das ameaças desaforadas, o povo se calava. Não porque temessem as bengaladas, mas sim porque aquela conversação era um ritual de todo dia, de toda semana, de todo mês, de todo ano. Aprendiam muito com mestre Tatá e seu jeito ranzinza. Eles o amavam, o respeitavam, davam ouvidos aos conselhos que passava em suas histórias, um jeito leve de dizer, que nesse mundo nada nem ninguém era perfeito e que mesmo assim ou apesar disso, era preciso fazer-se perfeito, era preciso anelar a perfeição. Então, sob o silêncio absoluto, onde nem as moscas ousavam fazer barulho, mestre Tatá, português com jeito de tapuio, de gestos rasgados e selvagens, próprios de quem sempre pertenceu a este chão, velho pajé abençoado, guardião dos segredos da magnífica tribo dos Manáo, dava prosseguimento ao assunto.

''A coisinha estava cada vez mais perto, a vara de japecanga, açoitando as árvores e ressuscitando os animais mortos. Num instante, a mata encheu-se de um mau cheiro terrível e, subitamente, por cima de minha cabeça, o caititu saltou com seu sinistro cavaleiro. Valei-me Deus! Arrepio-me só de lembrar! 

Invocando todos os santos assentei minha cabeça e meu coração, e pensei que o que funcionava com o Curupira podia funcionar com o Caipora. Assim, peguei um pedaço de cipó e rapidamente fiz um trançado, escondi-lhe as pontas e sem olhar, joguei-o para trás, daí gritei: ‘Caipora, Caipora se fores mesmo capaz, o trançado desfarás!' 

O desafio, não surtiu, à primeira instância, o efeito esperado. O Caipora voltou-se furioso em minha direção, disposto a me surrar. Ao estalo da vara, prontamente, pulei para trás e acoitei-me debaixo de um grosso tronco de árvore que havia tombado recentemente por causa das chuvas. O caititu, sem poder por freio à velocidade em que vinha, tropeçou no tronco, enterrando o focinho no lamaçal recente, jogando ao longe a feiosa e vingativa criatura. Ela caiu justo em cima do trançado e, curiosa, tomou-o em suas mãos. No mesmo instante esqueceu-se de mim, do macaquinho, dos seres da floresta e da sede de vingança. Enquanto se distraía, aproveitei e sumi, acertando o rumo de casa ao alvorecer. 

Sob os cuidados meus e de Aurora, o macaquinho cresceu, dócil e feliz. Mas, um dia, como de costume, fui buscá-lo para o nosso passeio matinal e ele lá, já não estava. Deixara o aconchego de sua casinha, especialmente construída, para subir nos galhos do abacateiro que havia no quintal. 

Considerávamos o abacateiro como um marco, uma divisa, que se interpunha entre nós e a floresta. Do abacateiro pra cá, havia a casa e a cidade com todos os seus afazeres e esquecimentos; do abacateiro pra lá, a floresta verde e infinita. E foi do alto da árvore que ele pode ver um mundo que ainda não conhecia. Havia vida interessante além do abacateiro...

Contemplou-me com aqueles mesmos olhos graúdos e tristes, que um dia fizeram dar-me conta do oceano de amor que carregava dentro de mim, e de como este sentimento assumia formas e atitudes diferentes; chegara o tempo de partir. Acenei-lhe um adeus e ele; como que entendendo o meu gesto, virou-se e timidamente pulou um galho adiante, logo depois pulou outro, outro, e mais outro... Esperei que seus guinchos de alegria desaparecessem nas profundezas da mata, confundindo-se a outros gritos, (quem sabe até aos do Caipora!) a outros ritmos, dando continuidade ao que fora, bruscamente, interrompido. Chegara, afinal, a minha redenção; Graças a Deus havia vida além do abacateiro; vida pulsante; verde e infinita. Graças a Deus, meu amigo descobrira que o mundo era grande; e ia além, muito além do pé de abacate. Nem sei por quanto tempo, fiquei debaixo do sol da manhã, só sei que saí somente quando a chuva começou a cair.

Sempre que contava aquela estória, a voz de mestre Tatá, tornava-se estranha e antiga; ecos de um mundo que não conheciam e que infelizmente não lhes era dado penetrar. Precisavam daquela veneranda e encanecida presença, para que tivessem acesso também a estes tesouros ocultos. Mas naquele dia, a voz do velho contador de histórias pareceu mais embargada, mais lenta, as palavras saiam como se pensadas pela língua, não pela mente. Mestre Tatá, não pertencia mais a este mundo. Há muito ele se fora, talvez levado pelo macaquinho, amigo inesquecível, de olhos graúdos e tristes.

Mestre Tatá levantou-se com dificuldade, com a ajuda de sua bengala de marfim, pôs o chapéu de volta à cabeça, despediu-se de todos e partiu. Foi seguindo pela rua sem calçamento, como fazia todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos. Quando acabava de contar uma história, não tinha mais nada a dizer, nem a fazer, ela bastava por si.

Mestre Tatá, velho português, de jeito tapuio, de gestos rasgados e selvagens, próprios de quem sempre pertenceu a este chão; pajé abençoado, detentor dos segredos das tribos dos Manáos, morreu nessa noite; morreu dormindo, deitado na rede, iluminado pela luz do lampião, embalado pelas doces canções que tanto gostava de cantar.

Dona Aurora, amor de muitos anos, consorte querida, disse que um sorriso lhe passeava nos lábios, última travessura de sua alma de menino.

***

1 panema: azarado

2 japecanga: salsaparrilha. Planta cujas raízes são usadas como depurativo.

3 Curupira: De curu (menino) e pira (corpo). Corpo de menino. Também chamado de BORARÓ pelos índios Tukano do alto Rio Negro. Em 1560 já era mencionado pelo padre José de Anchieta. Considerado como um duende protetor da floresta, tem os pés virados para trás, afim, de confundir os caçadores fazendo com que se percam. Surge e aparece num abrir e piscar de olhos. Para que não lhe façam mal os povos da floresta costumavam deixar presentes (penas e flechas) pelo caminho.

4 Caipora: (Do tupi kaa’pora; morador do mato) Ser fantástico proveniente da mitologia tupi. Sua aparência varia conforme a região. Geralmente assume a forma de uma mulher unipede, que anda aos saltos, ou então, surge como uma criança de cabeça enorme ou ainda como um caboclinho encantado. Também pode ser um homem gigante, montado num porco do mato, ou com um pé só; redondo, seguido por um cachorro papa-mel. (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira; NOVO DICIONARIO AURELIO da língua Portuguesa; 2ª Edição Revista e Ampliada; Editora Nova Fronteira).

5 Matintapirera ou Matintaperera; Vocábulo composto de duas palavras do idioma tupi. Mati (coisa pequena) e tapirêra (que mora em uma tapera) Pequena coruja agourenta (Stradelli), conhecida também por “rasga-mortalha”. Ave cuculídea (tapera naevia L.) de cor pardo-amarela (Câmara Cascudo). Ave trepadora; comedora de inseto; possui fama de descobridora de mananciais (Raimundo Moraes). Ave que tem por hábito colocar seus ovos em ninho feito por outros pássaros. Sin: saci, sem-fim e fenfém (Aurelião). Entidade do folclore, cheia de mistério (uma MAÍUA), correspondente ao Saci (Carlos Rocque). Walcyr Monteiro refere-se a uma história, recolhida em Inhangapi, em que a Matinta Perera era homem. Pássaro de canto agourento. (Altino Berthier Brasil; Amazônia Legendária; Poesanato; Arte e Cultura).

6 Saci-Pererê; Personagem do folclore, bastante popular. Tem apenas a perna esquerda e usa uma carapuça vermelha. Vive pitando um cachimbo. Assusta com muito gosto quem passeia pela floresta com má intenção. Dizem que protege os humanos de picadas de cobras e aranhas. Adora pregar peças e uma de suas brincadeiras prediletas é esconder-se num redemoinho ou fingir-se de vaga-lume para bisbilhotar a vida das pessoas. Dentro das casas, faz travessura que nem criança. À noite, monta num cavalo e corre com ele até o animal ficar cansado. 


quinta-feira, 5 de junho de 2008

COMO ADORMECER



Em noites de insônia inventei um modo de adormecer infantil em que me falo baixo e muitas vezes dá certo. É um pouco assim, se me lembro: “Retrogredi: sou uma criança pequena. Eu me deito e todos dormem comigo. Nada de mau pode acontecer. Tudo é bom e suave. A alma é eterna. Nunca ninguém morre. O prazer de ser criança é grande e doce. Deus se espalha pelo meu corpo: sua doçura é sentida como um paladar pelo corpo todo. Está bom, está bom. Deus me ilumina toda mas bem em penumbra para sua luz não me despertar. Sou uma criança: não tenho deveres só direitos. O prazer de estar viva é o de adormecer. Sinto esse viver lentíssimo como um sabor pelas pernas e pelos braços. Minha alma está enfim entregue. Nada mais tenho a entregar. Nada me segura mais: vou. Vou para a beatitude. A beatitude me guia e me leva pela mão. A beatitude em vida.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

MAR ABSOLUTO

Espera! Pára um instante e ouve o que tenho a te dizer.

Para mim, falar de amor não é tão simples assim.


Meu coração está trancado, fechado, selado, por dentro e por fora.

Não tome por arrogância ou fuga esta minha explicação. Uma espécie de terror envolve a minha dor e não quero outra vez meter os pés pelas mãos.

Eis que a lua surgiu no céu e espero tornar-me uma lua ainda maior e seguir enfim o meu caminho, sem sobressaltos, sem peito apertado, sem pensamentos alegres ou sombrios. Uma vez só já me basta.

Uma lua maior que a lua que surge no céu, pretendo me tornar, livre de corpo e alma, a pairar, soberba e solitária, acima de outros mares. Meus olhos não hão de tornar a verter lágrimas amargas de rancor ou de saudade, já que os mares sob os quais pretendo pairar, não são desta terra, não pertencem a ela.

A paixão, o amor, ou seja lá o que for, quer tomar-me e lançar a longa e penosa busca por mim mesma no mar de lava em ebulição da incômoda incompreensão...

Desejo e não desejo acompanhar-te, para mim basta amar-te à distância, sem tormentos.

Serei como a lua que desponta no céu, talvez, uma lua ainda maior, porém, sem o lado escuro, oculto, tocada apenas pelo mar da tranqüilidade, pleno, sereno, único... absoluto.

terça-feira, 3 de junho de 2008

DIAS LONGOS... LONGOS DIAS...


Adormeci na fria varanda de uma casa que não era a minha e acordei para uma outra vida.
Dos sonhos sonhados poucos deles se realizaram, mas, isso é bom, pois significa que tenho mais sorte que a maioria...
Tive um amor, alguém que me abrigou em seu peito por algum tempo, porém, ele não suportou a angustia de viver em meio a dejetos e destroços de um mundo corrompido... Nem os acordes das canções arrancadas do seu instrumento tiveram o poder de o consolar, nem o amor foi mais forte que a dor.
Todo dia acordo, sozinha, na varanda fria, dessa casa que não é a minha, ergo a vista e só vejo a longevidade dos dias. Olho para trás e revejo a vida de outrora. A carga de lembranças ainda é muito sombria...
E as horas vão passando com a certeza de eternidade e a tristeza alegre da tarde que logo vira noite...
Verões de luzes, invernos de chuvas tanto faz... dias longos... longos dias!

segunda-feira, 2 de junho de 2008

MEDITAÇÕES DE UM VAMPIRO


Luz e escuridão
Passos no chão
Olhos abertos
Ouvidos atentos
Desejos do coração...
Luz e escuridão
Passos e flores
no chão.

***

O morto-vivo andou por muitos caminhos,
até não saber mais para onde ir.
Céu e inferno entrelaçados, numa tiara mística,
arrebatam os devotos do bem e do mal.
Dentro do ser, a semente fugidia,
aguarda o excesso de luz se dissipar.

***

I

Em um vale abandonado por todos esquecido,
entre as ruínas de um castelo assombrado
medita um vampiro.
Imensa sombra, que do sol se oculta, ao longe escuta
a canção que vem do mar...
“Será alguma sereia também a se lamentar?!”
O vampiro suspira de desalento e solidão; só ele não chora,
de seu frio olhar, lágrimas não rolam.
Este sentimento de tristeza infinda não sabe de onde vem
e no fundo de sua mente procura uma resposta, porém,
ouve somente o eco das ondas do mar a bater nas rochas...
“Será algum navio a errar no mar bravio?!”
Lembra-se então de quando, ao ansiar pela luz, a treva se fundiu.
O vento bate nas janelas do castelo.
“Com que propósito, fui com a imortalidade amaldiçoado ?!
Apenas para espalhar a dor, o ódio e a morte e assim viver atormentado?!
O que estou a dizer... Viver não é bem a palavra certa... morto-vivo sou,
almejo o descanso eterno... Tantas perguntas, nenhuma resposta...
Amanhã, com uma estaca ao peito cravada, quiçá eu consiga a remissão...
(ah... mas a estaca dói tanto... é sacrifício demais para um velho coração)
então, melhor será esperar nascer o sol, daqui, do alto desta torre,
e eis que, uma vez, em cinzas transformado, meu espírito possa voar
em paz a busca de liberdade... Aí, talvez, quem sabe, aquele grande espelho,
há tempos pelo pó encoberto possa, enfim, refletir minha imagem”.

II
No alto de uma colina, num vale antigo,
existe um castelo em ruínas, onde habita um vampiro.
Quando o manto da noite cai e tudo envolve, trazendo paz e descanso aos homens,
no velho castelo o vampiro desperta e outra noite de tormentos recomeça.
Medita por entre os vazios aposentos o que o levou a tamanha solidão!
Eternamente condenado a vagar nas ruínas de um castelo assombrado.
Senhor de muitas formas, a nenhuma deseja mais.
Ladrão de almas, que de sangue necessita, tem horror a sua sina.
Está cansado de tanta imortalidade.
Lá fora os lobos uivam, chamando-o para a carnificina, mas hoje ele não vai...
O vampiro medita!

domingo, 1 de junho de 2008

MENINA, SOLIDÃO, SONHOS E BOLAS DE SABÃO


Fim de tarde. À porta de casa, a menina brinca com lindas e coloridas bolas de sabão. Hoje não há vento para levá-las para longe. Há só uma menina solitária e seu brinquedo predileto. Também há espaço, pássaros e árvores, mas o lugar é triste, a casa é triste, a tarde é triste. A solidão da menina me atinge profundamente.

As bolas, lindas e coloridas, partem, indiferentes. Iguais aos sonhos, algumas alcançam grandes alturas, subindo até o infinito; outras esbarram em folhas e galhos, espalhando para todo lado milhares de pequeninas bolhas; outras ainda se estatelam no chão, cumprindo assim, seu efêmero destino. 


Do livro MORONETÁ-Crõnicas Manauaras, Virgínia Allan, Editora Valer

sábado, 31 de maio de 2008

O REI E A DONZELA [1]


Um rei velho e cansado, apaixonado
Uma jovem bela e etérea, ainda donzela
Ela dança com a morte
A morte dança com ela
A morte rouba a donzela
Debaixo da língua, um segredo
Na mente ativa, a revelação
No fim da busca, o desassossego
No fim da busca, a distorção
Um rei velho e cansado, apaixonado,
Para sempre, extasiado, às margens de um lago.


*****

Conta-se que um dia, o rei Carlos Magno foi assaltado por uma súbita, desvairada e violenta paixão.
A dona de seu atormentado e descompassado coração era uma bela flor alemã, ainda donzela, e o rei, mesmo velho e cansado, apaixonado, por conta disso, vivia amargurado. Ninguém conseguia livrá-lo desse estranho sentimento.
O rei só estava feliz e sossegado se mergulhado nas profundezas dos claros olhos da amada, rosa branca, pálida ... Só estava feliz, se tocasse as loiras e perfumadas madeixas de sua longa cabeleira... Alheio a tudo, assim, se esquecia ele do reino, se esquecia ele de si, por inteiro.
Logo se preocuparam os notáveis barões da corte com a recente debilidade do soberano... o que seria do reino com um rei frágil, sem dignidade, imperfeito? Outrora, valente guerreiro, cavaleiro triunfante, agora um velho senil, completamente transtornado, dominado por uma paixão amorosa, ardorosa, perigosa...Urgiam serem tomadas imediatas precauções... Então, eis que a morte, para surpresa de todos, faz sua visita “inesperada” e era uma vez uma jovem bela e etérea, ainda donzela...
Ahhh... suspiraram os barões aliviados, pensando eles que, terminara enfim, o desvario efusivo do velho rei ensandecido... Terminara? O que são os tormentos? Uma vez que nos chegam não nos deixam tão facilmente... e às vezes, “a emenda sai pior que o soneto”... Não... pois, outra vez, tornaram a se desesperar os cuidadosos barões da corte ao verem o rei, fora de si, manter a jovem morta, embalsamada, cuidadosamente guardada em uma sombria câmara mortuária, com o rei mantendo-se ali, nem um segundo se afastando, nunca, jamais, querendo partir. “Sacrilégio”, diziam uns... “sacrilégio”, diziam outros... “sortilégio”, dizia consigo o arcebispo Turpino... “sortilégio de amor e encanto... obra de magia negra poderosa... só há de ser isso”... repetia o arcebispo... “não é normal tanto apego, tão louco desespero por um corpo inanimado ... sortilégio de encanto e amor, sim... o rei só pode estar enfeitiçado, cruelmente amaldiçoado por alguma alma marcada, tocada pela sombra do demônio, que, solitário e invejoso, está sempre à espreita,vigiando”.
E assim pensando, o ponderado arcebispo, o cadáver tratou de examinar, procurando de cima abaixo onde poderia estar escondido o objeto mágico que mantinha prisioneiros o corpo e a mente do infeliz soberano. O objeto, pensava ele, haveria de encontrar e dele se livrar sem demora, libertando, dessa forma, o pobre rei, que já sofrera bastante nessa lida... por Deus, certamente... era o que aconteceria.
O arcebispo, tanto procurou que encontrou; oculto, sob a língua da donzela morta, deparou-se com o segredo: um anel maravilhoso, com uma bela pedra preciosa engastada, mas ai, pra quê... o sortilégio de amor e encanto não acabou ali... e lá o arcebispo Turpino, imediatamente, viu-se assediado pela luxúria incontida do velho rei Carlos Magno.
Tentando livrar-se do transtorno, o lago Constança, pensou o arcebispo, seria a solução final para tal embaraçosa situação pela qual acabara sendo levado e o santo homem, desesperado, atirou o anel no lago que afundou rapidamente... Sim... Constança, o nome do lago, e também nome de mulher, foi a solução para o arcebispo Turpino, mas não a salvação de Carlos Magno, que, mesmo velho e cansado, apaixonado, postou-se para sempre sentado às suas margens. Para sempre aprisionado ao macabro sortilégio de loucura, amor e encanto que emanava das profundezas e contaminava a pureza das águas.
***
[1] Lenda sobre o imperador Carlos Magno, citada por Ítalo Calvino em seu livro SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO; pág. 45; trad. Ivo Barroso; Editora COMPANHIA DAS LETRAS.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

CAROLINA [1]



Da minha janela vejo Carolina donzela;
Um pôr de sol; um beijo; uma azaléia.
Da minha janela vejo a praça e os olhos de saudades
da mulata, vejo a banda e a vida passarem.
Mas, oh, que pena... Só Carolina não viu...
E o tempo passou e tudo levou
Só Carolina ficou.
E eu, com meus olhos de expectador, devagar fechei a janela,
lá deixando a donzela à mercê do tempo e da dor.

[1]À partir da canção CAROLINA, de Chico Buarque de Holanda.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A LUA E EU


Lua, lua, tão fria e distante, num céu coberto de estrelas;
quero pedir-te amiga e senhora, tua benção e proteção.
Olha por mim, dama caprichosa; guia-me com tua luz
e no caminho do bem me conduz.


****

A lua branca boiou no céu, parecendo um barquinho
de papel, navegando num imenso mar azulado!
Imenso mar azulado que percorro, pilotando, com o coração

a branca lua, vagando na solidão.

****

Da janela
olhos cansados contemplam
a lua de outono

***

Vaga lua
Vago lume
Vagalume

Vagar distante
Vagamente delirante
Vagar errante

Vago espaço
Aberto
Aéreo
Solitário

Vaga vida
Vago sonho
Vagar tristonho
Vagar medonho

Vago mundo
Vagabundo

Vago norte
Vaga sorte
Vaga morte
Vago mistério

Indecifrável
Impenetrável
Silencioso
Eterno
Profundo

quarta-feira, 28 de maio de 2008

SALVADOR DE SI MESMO



Ao reler certo dia o livro SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO, de Ítalo Calvino Companhia das Letras, 1993, tradução, Ivo Barroso) no artigo sobre LEVEZA, não pude deixar de pensar na comparação que ele faz do mundo transformado em pedra. Sim, para ele, o mundo inteiro às vezes, parecia transformado em pedra, “mais ou menos avançadas segundo as pessoas e os lugares”, tal petrificação, ainda segundo ele, embora lenta, “não poupava nenhum aspecto da vida, como se ninguém pudesse escapar do olhar inexorável da horrenda Medusa”.
Relembremos o mito: Perseu, o herói grego (não preciso, creio, dar aqui nenhuma definição da palavra herói, mas escreverei uma frase de Joseph Campbell que diz que um herói é o homem da submissão autoconquistada e se quiserem saber mais, tipo a quem ou a quê deve ele, o herói, submissão terão de ler mais o dito autor) era filho de Zeus e da mortal Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos, que um dia, temendo ver cumprida a previsão de um oráculo, que lhe predisse que Dânae teria um filho que lhe usurparia a vida e o trono, mandou encerrá-la numa torre. Mas, para Zeus, o que é impossível? Assim, em forma de uma chuva de ouro, Ele caiu sobre Dânae, engravidando-a .
Acrísio, desesperado, pegou mãe e filho e após colocá-los dentro de uma arca abandonou-os, à deriva, ao mar. Porém, a correnteza, em vez de virar a embarcação e afogar mãe e filho, concretizando enfim, o desejo de Acrísio, levou-a até a ilha de Sérifo, aonde o rei Polidectes, apaixonou-se pela bela Dânae.
Polidectes, com o passar do tempo, por ciúmes, quis afastar Perseu de sua jovem mãe e, assim, encarregou-o de uma missão; se diga, porém, missão esta primeiramente sugerida pelo próprio Perseu e cobrada em seguida pelo rei tirano, que era trazer a cabeça da Medusa, a Górgona mortal, mas, cujo olhar fulminante era capaz de petrificar; feito que ele consegue, graças a ajuda dos deuses Hermes, Atena e Hades.
O herói Perseu, mata a Górgona e carrega a cabeça consigo, dentro de uma sacola presa a cintura e nos momentos de perigo, para sua proteção é capaz de usá-la de maneira sábia, evitando, de olhá-la diretamente, seguindo sempre o enunciado dos deuses. Seu escudo de bronze é o seu espelho, empunhado por Atena, a deusa da divina sabedoria, e é por ele que é capaz de encarar o terror. Perseu é capaz de entrar e sair do mundo sombrio, sem maiores danos, trazendo consigo valiosos, belos e úteis presentes, inclusive Pégaso, o cavalo alado, benquisto das musas, que nasce do sangue da Górgona abatida, o animal é filho da maldita. Porém, Perseu o domina e, cavalgando-o vai além das nuvens. Claro que tais ações não são facilmente praticáveis e por isso Perseu é um herói.
Bem, Ítalo Calvino se absteve de interpretar o mito, coisa que aconselha todo bom contador de histórias, ele queria apenas fazer uma relação alegórica do poeta com o mundo e o processo de continuar escrevendo.
Eu, por outro lado, vejo também uma relação, de certa maneira proposta pelo próprio Calvino, ao ver o mundo em vários estágios de petrificação. Nos tempos atuais, aos poucos, vamos sendo petrificados, as pessoas de um modo geral, vão tomando a forma da Górgona ou das estátuas, mudas, petrificadas, em maior ou menor grau. Ficamos alheios e estranhos ao nosso mundo ou ao que está acontecendo ao nosso lado. Desistimos da roupa de herói, quase não a vestimos mais, pois a roupa encolheu e agora cabe em muito poucos. Sobra-nos o papel da Medusa ou de meras estátuas. Seres humanos frágeis, fracos, e das tarefas que nos impomos ou das que nos são impostas, não damos conta, e, incrédulos, renunciamos aos conselhos dos deuses... Quando olhamos no espelho a imagem que nos aparece, distorcida, é a do monstro. Como fugir? Como escapar disso? Dessa infame e vil transformação operada por nós mesmos? O herói deve nascer; crescer em seu heroísmo e ser ultrapassado... Temos capacidade de voar muito alto, em um cavalo alado. Mas, por onde começar? Minha sugestão é que comecemos por onde começou Perseu, abandonando um mundo pronto e protegido, mas cheio de armadilhas e ilusões, para partir em busca do seu próprio, da construção de seu mundo, não ideal, mas, real. Na jornada necessária que precisamos empreender, temos que mergulhar, “encarar” e se possível sobrepujar o sombrio, um dever para com nós mesmos e para com os que nos cercam.
No caso do herói, tirar a cabeça da Medusa da sacola e mostrar o próprio horror só em casos extremos, realmente necessários. A minha dor, ou a minha vitória, ou ainda a dimensão do meu horror, não precisam petrificar a ninguém, gratuitamente, já que isso elas mesmas já fazem por si, pois ao dar maiores dimensões aos seus desejos, medos e dramas; correm elas o risco de se metamorfosearem na terrível Medusa, isolando-se, vivendo a parte e, ao contrário do herói, que escolhe a quem petrificar, acabam por transformar a qualquer um em pedra, ao menor sinal de aproximação. Há quem queira esse fardo...
Ítalo Calvino remete-nos também em seu artigo, a leveza do ser, do pensar, do elevar-se além das precárias condições humanas e a partir das observações de Milan Kundera mostrar como a leveza pode se tornar insustentável tal o peso que ela demonstra ter com o passar do tempo. Um peso de pedra. Mas, lembrem-se que Calvino falava de literatura, eu estou a ponderar sobre as situações humanas, mas, no final, ambas nem diferem tanto assim uma da outra. Com o passar do tempo quase tudo se petrifica ou perde a leveza de ser; o mundo, as pessoas, a sabedoria e as relações... e ficamos a espera de um herói que nos salve, de alguém que, em vez de pedras, mos mostre um jardim, cheio de flores, belas, coloridas e leves já que não somos capazes de cultivar e manter o nosso próprio jardim; fugimos das aulas de jardinagem. O mestre ficou sozinho no quintal vazio e em lugar das flores vamos colocando grandes, feias e pesadas estátuas de pedras.
Farid-ud-din-Attar, em seu livro O Parlamento dos Pássaros (Attar Editorial), conta-nos que no alto de uma montanha, na China, vive um homem velho que chora sem parar. Entretanto, mal suas lágrimas tocam o chão, convertem-se em pedras que ele torna a recolher. A verdade nua e crua, porém é que nem todos nós podemos ser que nem Perseu, herói imbuído de generosidade e delicadeza para com todos os seres mesmo para com os monstros, como diz Calvino, e nem todos conseguimos ser hábeis jardineiros; fazemos o que podemos, vamos até onde nos compete chegar nossa frágil paciência/resistência/competência. Algumas vezes, incapazes de matarmos nossos monstros, destruímos nosso jardim, pisoteamos nossas flores, acabando com o pouco que nos resta, pois a impotência nos tira a vontade de seguir adiante. O sentimento de confusão, nulidade, exclusão, faz com que abandonemos o mundo em que se precisa viver sem a ele pertencer, e, afastados de qualquer convívio humano, por fim, morremos... esquecidos, longe da piedade de qualquer bom samaritano. Antes disso, entretanto, acontecer, será que nos perguntamos o que podíamos ter feito com nossa confusão? Como nos livraríamos dela? Tentamos, de verdade, encontrar ou saber sua causa e dar-lhe uma solução? O porquê de ter surgido e permanecido? Se a reposta é sim, deveríamos ter decidido logo o que poderíamos ter feito a respeito, pois só os equivocados criam e sustentam sua própria confusão, embora façam crer a todos que tentam desesperadamente dela escapar. Uma pessoa confusa é, antes de tudo, alguém que não presta a devida atenção a si mesmo, a confusão se dá porque tal pessoa não obteve o que queria, temos o costume de não percebermos que somos postos à prova a todo instante, tanto pelo que queremos quanto pelo que não queremos, paciência para com um, paciência para com o outro estado de coisas, querer /não querer... Como dizia o grande Bayazid (morto em 875 d.C.) “deves sentir teu próprio nada”.
Tais sentimentos e estados já citados deveriam ser pensados antes como formas de proteção e usados como escudo, como faz Perseu. Todavia, vamos parar por aqui. De repente, eu é que me verei metida em confusão por não saber mais o que dizer. Parece que tenho toda a sabedoria do mundo a disposição. Tenho, tenho sim, mas não posso passá-la adiante e nem sei ainda direito como usá-la em meu próprio proveito, não sou mestra de nada, nem do ABC, e cada um tem que buscar em si os meios de empreender e chegar ao fim de sua viagem, sentindo que cumpriu, com efeito, a sua missão. Busque a sua compreensão naquilo que diz respeito a você e sua busca por auto-conhecimento. É possível escapar do olhar aterrador da Medusa; é possível escapar de nos transformarmos no monstro de olhar aterrador;um olhar humano, condescendente, mas atento, sobre tudo, principalmente sobre nós mesmo já é um começo, e que começo...!

Cantilena do Corvo

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