Um corvo, um cobre

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sábado, 12 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA



DUAS HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO

 
Fantasmas, assombrações, encantados. Quem é que não tem uma história para contar?
Eu, particula
Frmente, não acredito, porque vê, nunca vi. Nesses casos, sou igual a São Tomé. Mas, meu pai, minha mãe e outros membros de minha família tiveram alguns contatos com o incompreensível.
Comecemos, pois, por meu pai, que nunca cansava de contar-nos as diabruras aprontadas pelo primeiro marido de minha avó.
Nascido e criado no município de Santa Isabel do Rio Negro, papai era muito amigo de causos mirabolantes e se ao contá-los percebesse no ar qualquer sinal de incredulidade, jurava de pé junto que nem tudo era mentira.
Minha avó, que atendia pela alcunha de Branca (Eleutéria, seu nome de batismo, que ela, com toda razão, detestava) enviuvara cedo.
Mulher arrogante; autoritária, possuía algum dinheiro, herança de Casemiro, o pobre coitado que havia passado dessa para melhor.
Com um toque de maldade, (sei que não é de bom tom falar mal dos mortos, mas, olvidemos um instante este detalhe), em se tratando de Casemiro, passou mesmo pra melhor, chegou aos meus ouvidos que os mandos e desmandos de vovó eram terríveis! Suportá-la, deveria ser uma provação, um castigo, por um pecado cometido ao longo do caminho, e que agora exigia expiação.
Fato é que coisas estranhas começaram a acontecer na casa de minha avó. Louças voavam, objetos sumiam, nem as crianças escapavam; levavam sovas quando, pensando que ninguém estava vendo, preparavam alguma travessura. Aliás, no início, elas é que levaram a culpa pelas louças quebradas e os objetos sumidos. Levavam sovas dos vivos e também dos mortos (aqui, no caso, do morto). Tentavam se defender, dizendo que era tudo culpa de Casemiro, mas não adiantava, e tome sova, ouvindo repetidamente, que era feio mentir, e ainda por cima culpar os mortos. Quem morre, morreu, não volta, e tome sova. Coitados.
Vovó começou a lhes dar razão quando os empregados, reunidos na roça conversavam animadamente. Nisso, um deles contou uma piada, mas ao pararem de rir, uma risada continuou, alta, sarcástica e bem-humorada. Não tiveram dúvidas, era mesmo Casemiro metendo bedelho em assunto de vivo.
Na casa, ai daquele que fosse se sentar à cabeceira da mesa. Todo dia, na hora do almoço, lá estava prato, copo e talher, do jeitinho que era antes. Olhe, foi tanta aporrinhação, ninguém agüentava mais. Não se conseguia esconjurar o fantasma e mandá-lo de volta pro breu de onde veio.
Entretanto, minha avó, sangue quente de espanhol que, estranhamente, não havia sido molestada, resolveu acabar com aquilo. A gota d'água se deu no comércio, quando ela, muito distraída, fazia o balanço do dia. Suavemente, sentiu algo lhe subir nas pernas e parar em lugar proibido. Ah! Pra quê, só podia ser artes do safado, que nem morto sossegava de suas safadezas. Desta vez, haveria de voltar, por bem ou por mal, pros quintos dos infernos, de onde nunca deveria ter saído. Disposta, foi até em casa e pegou uma espingarda de grosso calibre e saiu atirando. Correria geral. Branca, quando se enfezava, sei não, melhor sair da frente.
O fantasma, eu não sei se, a principio, intimidado, se aquietou, mas quando viu o trabuco virar pro seu lado, mesmo morto, apavorou-se; apavorou-se tanto que na hora de sumir, deixou o relógio cair. Minha avó, que possuía um raciocínio rápido e frio, associou logo o relógio à aparição, e naquela noite mesmo, fez desenterrarem o defunto e enrolando o relógio, muito bem enrolado, num pano liso e fino, meteu-lhe no bolso da roupa carcomida, devolvendo-o depois à sepultura. Posso afirmar, dizia meu pai, embora nessa época não fosse nem nascido, que dessa noite em diante, nunca mais o assombroso apareceu.


*********

Agora, quero falar de minha mãe, que tal qual meu pai passou muito tempo, escondida nos matos.
Conta-se que meu avô, cabra macho da Paraíba, sumiu de casa aos dezesseis anos, vindo parar aqui, neste fim de mundo. Isso faz muito tempo, e ninguém se zangará se repetir que aqui era ''um fim de mundo''. Expressão engraçada, mas, menina ainda minha mãe, ela achava mesmo que aqui era o fim. Sempre metida por dentro dos matos, carregando quilos de piaçava
1 nas costas, fizesse chuva, fizesse sol; estivesse boa, estivesse doente. Vida dura, sofrida, de gente com apenas o pirão de farinha e peixe para comer.
Moravam nas cabeceiras do rio Ipixuna onde, pra se encontrar um vizinho, haja chão pra percorrer, e minha mãe, menina ainda, tinha toda razão em acreditar que aqui só podia ser um ''fim de mundo''. Quando não estava ocupada carregando piaçava, ficava cuidando dos irmãos menores, que meu avô, cabra macho da peste, tratou de providenciar. Sozinha menina ainda, com tantos afazeres, chegava a chorar de tanta solidão.
Vovô poderia ter enricado e prover assim um futuro melhor para sua família, mas era daqueles que não ligava contente por ter um prato de pirão de peixe e uma rede armada no jirau. Era um cabra da peste, daqueles que achavam que mulher havia nascido para ser escrava, melhor dizendo, burro de carga, sem vida pra viver, sem sonhos pra sonhar.
Para os outros, era um deus benfazejo. Seria capaz de dar a roupa do corpo, ou o último alimento da família ao ''necessitado''. Era o melhor amigo do regatão
2, e nem por isso, por causa de uma briguinha besta, escapou de ser quase assassinado pelo dito amigo.
O regatão, “amigo da onça”, isto sim, era um homem ruim, tão ruim que um dia, ao anunciarem-lhe a morte de um dos pescadores, desabou num choro convulsivo. Preocupados e admirados; os outros lhe consolaram, dizendo que se soubessem que tinha tanta estima pelo fulano, teriam tido mais cuidado ao lhe darem a funesta notícia.
O homem enxugou os olhos na manga amarelada da camisa e muito zangado, disse: ”Ora, e eu estou lá incomodado porque fulano morreu... O que me deixa passado, na verdade, é o fato do desgraçado, que me devia dinheiro, ter morrido sem me dar sequer um tostão. Se soubesse que seria assim, teria lhe despachado antes”.
Mas nada disso animava vovô a arredar os pés dali. Ele somente concordou após um fato, que por mais cabeça dura que fosse, foi forçado a se render.
Eis aqui o ocorrido: Já disse que, naqueles tempos, perdidos no ''fim de mundo'', para se achar um vizinho, devia-se percorrer, léguas e léguas de mata fechada, enfrentando escuros e os perigos do caminho; ou então, pegar a canoa e sair remando rio afora, até chegar no próximo vilarejo. Também já disse que moravam nas cabeceiras do rio Ipixuna, na mais completa solidão.
Um dia, minha mãe, sozinha (como sempre), lavando roupa na beira do rio, no meio do dia, deu em cheio com uma assombração, solenemente pairando acima das águas. Levantou os olhos devagar, e foi subindo, o corpo todo se acabando em tremedeira, o arrepio correndo a espinha. O fantasma não surgiu inteiro, podia-se ver apenas da cintura para baixo, mas era mulher e usava um vestido (ou saia) verde, e não demorou a pedir um favor.
“Ouça, minha filha, ouça com muita atenção. É do favor que me farás que obterei meu descanso eterno, não precisando mais importunar o mundo dos vivos. Guardo um segredo que me consome e preciso revelá-lo. Chamo-me Ana e moro pros lados do Matupiri. Hoje está fazendo um mês de meu falecimento. Há alguns anos atrás, roubei um São Benedito do oratório de minha irmã. A coitada sofreu tanto com o sumiço da relíquia! Aquele santo escurinho só lhe dava alegrias. Peço que o devolvas e desculpe-se por mim, implore que me perdoe. O santo está num nicho, aberto na parede, atrás do velho armário da cozinha. Vamos, prometa que vai me ajudar”...
Mamãe ouviu, prometeu e correu. Medo do que não se conhece, todo mundo tem.
Contou sua história, porém, vovô não acreditou e teria ficado por isso se minha avó, impressionada pelo relato, não tivesse se amofinado. Ficou tão doente, que o marido, foi constatar se era ou não verdade. Pegou sua canoa e rumou para o Matupiri. É não é que era realidade real e verdadeira! Encontrou o viúvo da assombração, que confirmou que dona Ana falecera há mais de um mês e foi enterrada com seu melhor vestido; um vestido verde; de bom caimento, que só usava aos domingos. Acorreram à cozinha e empurraram o armário; lá estava, dentro de um nicho aberto na parede, a imagem do santo.
Acontece que a irmã de dona Ana morava na capital, e meu avô ainda relutou em cumprir o prometido. Então minha avó continuou, dia a dia, amofinando. Não teve outro meio e com palavra dada não se brinca. Era sina da família teriam que cumprir. Assim, vieram para Manaus e minha mãe, fez o que devia ser feito. Aos pés de São Benedito, a irmã de dona Ana acendeu uma vela, para que iluminasse a passagem da alma recém-libertada. Mamãe nunca mais viu nada; vovó curou-se e vovô aprendeu uma lição.




1 piaçava ou piaçaba: palmeira de fibras usada em vassouras.
2 regatão: Aquele que regateia. Indivíduo que percorria os rios da Amazônia trocando ou regateando mercadorias. 

Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Eidtora Valer

CANÇÃO NO ESCURO


Tempos outrora, o cego, na esquina da rua, cantava acompanhado da viola. Ao seu lado, deixava o chapéu surrado, para receber os trocados de alguma alma piedosa.

E eu, tal como o cego tocador de viola, também canto uma canção no escuro, que distrai meus pensamentos de antigas recordações. E sem chapéu surrado ou acompanhamento, me vejo pedindo esmolas do impiedoso tempo.











quarta-feira, 9 de abril de 2008




A word is dead
When it is said
Some say
I say it just
Begins to live
Taht day

(Emily Dickinson)

*****

A palavra morre
Assim que é proferida
Disse alguém com sabedoria
Digo eu apenas
Que a palavra uma vez proferida
Começa a viver a partir desse dia.

(Virgínia Allan)

terça-feira, 8 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA



Segundo os índios Kamayurá, Moronetá é toda forma de explanação verbal ou narrativa, mas que pode ser também visual. Moronetá é como o espelho, refletindo uma realidade de uma outra ordem, diferente daquela na qual julgamos viver.

*****

Escuta piá [1], a estória que vou contar. Há muito tempo eu queria fazer isso, mas tu não me davas ouvidos. Sempre entretido com a televisão, com os videogames ou com o computador. Hoje, que consegui te pegar num instante de devaneio, aproveitarei. Vem cá esquece um pouco estes teus amigos e senta aqui comigo no jupá [2]. A janela está aberta e assim poderemos apreciar a paisagem.
Em que pensavas antes de eu chegar? Estavas triste? Por que, piá?
Não ouves mais o canto da cigarra? É! Também eu, aqui, já não a escuto. Só quando penetro nos confins da floresta. Mas, se serve de consolo, ainda se ouve o cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos.
É noite! Lá fora, o vento passa sussurrando antigos segredos. Estava tão ansiosa para te contar a história que agora nem sei por onde começar.


MORONETÁ


Num tempo sem tempo, ainda na aurora do mundo, um curumim [3] vagava perdido pela floresta.
Depois de muito andar, chegou, por fim às margens de um lago, onde se sentou para descansar e matar a sede, mas, ao inclinar-se...''erê!'' [4] Assustou-se. Havia um outro menino dentro do lago. ''Como ser isso?’’ Pensou. Recuou, desconfiado. Mas, a sede era tanta que resolveu aproximar-se novamente. Devagar, inclinou-se, e só então percebeu que era ele mesmo refletido nas águas calmas.
O curumim, de assustado, passou a apreensivo. Nunca vira nada parecido, pois na taba onde morava a fonte possuía água escura como a noite.
''Kaáguara [5] brinca comigo. Roubou minh’alma e deu para os espíritos das águas.''
E foi assim que, tratando de recuperá-la, mergulhou no lago, transformando-se no mesmo instante, num pequeno e colorido pirá [6].
O peixinho nadava solitário e sempre subia à superfície, tentando, aos saltos, alcançar às suas margens. Nem sabia direito porque fazia aquilo, mas algo o impelia a fazê-lo. De dentro do lago olhava, com olhos tristes; para um estreito caminho que lhe parecia tão conhecido, porém, não demorava muito cuidando do assunto; logo mergulhava de volta e recomeçava a nadar, pra lá e pra cá, pra cá e pra lá...
Uma tarde, porém, em que jasytatá uasú [7] surgia linda e brilhante no céu, o peixinho conseguiu lançar-se para fora do lago e, no mesmo instante, voltou a ser menino. Olhou ao redor, procurando o estreito caminho que agora sabia estar escondido entre as árvores. O peixe esquecera que na verdade, ele era um menino, mas o menino não esqueceria jamais, que um dia, havia sido um peixe e graças a esse estranho fato encontrara o caminho de retorno.
Teria uma estória para contar ao redor da fogueira, naquelas noites vazias em que os velhos esperam a morte chegar. As crianças a ouviriam, e depois a contariam aos seus filhos, que, por sua vez, a contariam para os filhos de seus filhos que...
''Certa noite de lua, o nosso vovô, o valente guerreiro Curumim, mergulhou num lago de águas mágicas e virou um enorme pirá. Tão grande tão grande era o nosso avô, que virou rei!''
E o menino seguiu contente caminho afora, direto para casa, rumo à Grande Aldeia das Aves de Penas Brancas.


*****

[1] piá: criança
[2] jupá: esteira
[3] curumim, colomi ou coromim: menino, rapazola.
[4] erê: interjeição que exprime espanto, surpresa, alegria ou mofa. Usual entre os índios e caboclos da Amazônia
[5] Kaaguara: Habitante do mato. Espirito do mal que constantemente prejudica os índios em seus afazeres.
[6] pirá: peixe
[7] jasytatá uasú: estrela grande. A grande estrela da manhã e da tarde.






Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Editora Valer

segunda-feira, 7 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA


Cidade quente! O sol castiga sem piedade.
As idéias e as vontades ardem num fogo invisível, junto com os meus miolos.

(V. A)

DEPOIMENTO NATIVO

por André Gomes

Porra; porra; porraaa...
Estou perdido e com calor filho da puta, mas quando desço a ladeira,
ao longe vejo o rio; longe do meu corpo para me refrescar,
a carcaça e o crânio resfriar a agonia do nativo
massacrado pelo calor.
Porra; porra; porraaa...
Calor que desequilibra; adormece; queima e mata a vontade
de seguir em frente.
Calor; uma desculpa.
Mostra tua face, irresponsável; ruim mesmo, de nascença;
preguiçoso, desequilibrado; falta de vitamina quando criança;
louco; fraco; medroso;sem-vergonha...
Revela-te!


domingo, 6 de abril de 2008

CHAMADO ATENDIDO


A ninguém nada direi...
Silêncio!

CHAMADO ATENDIDO

Foi assim que aconteceu.
Numa bela tarde de sol, D. Morte dava sua costumeira volta ao mundo, quando subitamente ouviu alguém chamá-la das profundezas de seu desespero. Ficou um pouco atrapalhada. Além de detestar esses chamados fora de hora, (este sujeito não era único descontente da vida), havia resolvido naquele dia não atender a nenhum suicida. Por causa deles negligenciara as prioridades e D. Morte, sendo politicamente correta, pensava em obedecer rigidamente o esquema de trabalho estabelecido pelo Grande Senhor desde o princípio dos tempos.
Assim, tapou os ouvidos e seguiu um pouco emburrada o seu caminho. Mas tal esforço não lhe caia bem, pois D. Morte sofria de alguma espécie de transtorno que a impedia de deixar qualquer assunto inacabado e depois o chamado se fazia tão insistente que apesar de sua decisão, não resistiu à compulsão de dar ao menos uma espiada no infeliz, que num momento de pura insanidade, desejava encontrá-la urgentemente.
Finalmente, chegou ao local determinado e percebeu que precisava cumprir a tarefa para a qual fora designada. Era isso que dela esperava O Grande Senhor de todas as vontades. D. Morte soube, ali, naquele instante, que não cabia a ela, e, diga-se de passagem, a mais ninguém; nem ao dito celerado, movido a desespero, a decisão final de viver ou de morrer. Somente Ele possuía tal poder e a decisão já havia sido tomada.
D. Morte, sempre pronta a fazer o seu trabalho, acolheu então em seus braços o pobre desesperado.
Lá fora fazia uma bela tarde de sol.
O jovem suicida deixou mulher e duas filhas. Para elas, a tarde tornou-se cinza.




sábado, 5 de abril de 2008

UM TOQUE A MAIS...



Quando ele tocava, o dia ficava menos triste; tudo se enchia de música, e ele era todo contentamento.
O inferno transmudava-se em paraíso, e a esperança; débil e enganoso sentimento, como principal convidada, adentrava a casa e, educadamente, sorria para todos.
O sol, penetrando pela janela aberta, as sombras dissipava e sobre o adorável músico estendia seu manto de luz.
Inesquecível!
A partitura de Autumn Leaves sempre ao alcance: perto do maço de cigarros e do copo de água.
O rock e o blues na cabeça e no coração; o jazz na palma da mão; o funk e o soul saltando, no ágil dedilhar das cordas do instrumento.
Agora, o baixo e o violão, encostados em um canto, aguardam o retorno de quem não mais irá retornar.
A casa está vazia; apagaram-se as luzes, mas Eu sei que vou te amar, solfejado, ainda ecoa em meus ouvidos.
O legado que deixou é feito de música; paz e amor, mas, a saudade e a dor são as partes que me tocam.



Do livro  RÉQUIEM; Virgínia Allan; Editora Scortecci

sexta-feira, 4 de abril de 2008

OS MEUS, OS SEUS, OS NOSSOS SABERES E O DIA DE AMANHÃ

“Amor, dedicação, aprender e doar, o outro olhar, cura coração”. *

E eu na contra-mão procuro uma indicação do rumo certo a tomar. Solução...?! Decisão solitária de um coração abalado por peripécias sofridas das vicissitudes da vida. 

Nasce em mim o sentimento, de que não existe pior tormento do que aquele de manter-se indeciso, e, entre o sul e o norte, passeia a minha sorte, enquanto espero amargurado, que o céu, por mim, faça o trabalho.

Seria um alívio, a remissão total de um coração maltratado, escolher um caminho e por ele seguir sossegado, eu, cavaleiro andante, errante, ferido em minha dor, aprendiz do amor, peço, com a alma em oração, o poder de doar, a outro, o olhar que cura coração.





*frase de Pedro Armando Furtado Volkmann

quarta-feira, 2 de abril de 2008

RAMONES FOR KIDS

Não faz muito tempo fui a um aniversário de criança e, lá, um garoto charmoso e cabeludinho, usando com orgulho uma blusa preta, com o nome da banda The Clash, para meu prazer, deu-me uma overdose de Ramones... Ramones na veia, embora diluído, posto que era a versão RAMONES FOR KIDS, mesmo assim fez um baita efeito. De repente, vi-me de volta ao “túnel do tempo”, quando eu ainda em plena contestação juvenil fui atraída pelo movimento punk. Imaginem, cheguei a andar de coturno e cabelo pintado e espetado, quase beirando ao radicalismo dos “carecas”.. mas esta é outra história... Aliás, voltando ao assunto, a música sempre foi muito presente em minha vida, desde pequena. 

Na adolescência, vivenciando um pouco a “rebeldia sem causa”, mergulhei em sons e ritmos mais pensados / pesados, na tentativa de descarregar a raiva e a frustração interior. É que por baixo de minha aparência calma e tranquilizadora, era eu uma bomba; prestes a explodir, igual a qualquer adolescente, sem tirar nem por, e, nesse conturbado período da existência pelo qual todos nós passamos, nos perdendo e nos encontrando, tudo o que acontecia a nossa volta servia como pretexto, fonte de protesto e indignação, sendo o homem, como sempre, o alvo de toda essa marcação.

Há mais de um ano tenho mantido certa distância da música, desde a morte de meu marido, que era músico e tinha paixão por seu instrumento, o contrabaixo elétrico, e, só agora, lentamente, é que estou retornando a essa maneira maravilhosa de dar vida aos sentimentos. 

Pois é... Mas enquanto cantava, ou melhor, sussurrava, “I wanna be your boyfriend”, “Sheena is a punk rock” e outras, tendo ao fundo o coro infantil, ia pensando a quantas anda o mundo e me deu uma profunda tristeza, mas também um pouco de felicidade e satisfação. 

Lembrei-me com saudade desse tempo que já ficou pra trás e dessa gente que fez parte de minha vida e que nos dias de hoje pouco tenho visto ou tido noticias. 

Sou saudosista? Sou sim, e muitos de meus textos giram em torno de recordações, do que é “isto ou aquilo” ou do assim é, mas bem que poderia ter sido... Pura recordação e saudosismo de um tempo em que a vontade de mudar, realizar o novo, era um imperativo. Porém, “como é comum de acontecer entre os homens” com tudo a gente se acostuma. Acostuma-se com as presenças e com as ausências, com o claro e com o escuro... E, muitas vezes, num ato de extrema e humilhante submissão, porque estamos “acostumados”, calamos a voz, baixamos a cabeça e os braços e depomos as armas, mas se fazemos isso, com relativa facilidade é porque não estamos acostumados, ainda, a ir à luta. Entretanto, a meu ver, o ontem não é melhor do que o hoje; só que hoje podemos acabar com tudo num abrir e piscar de olhos. Temos saudade de uma época que achamos que era melhor por termos saudade, na verdade, é de nós mesmos e de nossa capacidade de se indignar, de brigar, temos saudade de pensar que poderíamos fazer a diferença e revolucionar o mundo. Fizemos diferença, sim, mudamos muita coisa sim, mas a vida é um processo ininterrupto e enquanto dormimos, enquanto comemos, enquanto nos divertimos, enquanto envelhecemos tanta coisa continua a acontecer por aí, coisas boas e ruins. 

Dizem que a desgraça e a alegria estão harmoniosamente espalhadas entre nós e assim vamos vivendo... até quando e até onde? Não sei, não sabemos... Conscientemente, o homem tem evoluído mas, às vezes me pergunto se haverá tempo para uma remissão, se haverá tempo de salvar-nos e dessa forma salvar a Terra, que, enquanto aqui estamos é o nosso lar e lar será dos que depois de nós haverão de vir, quer isto dizer que estamos todos em um mesmo barco, infelizmente, capitaneado por mentes sombrias e mesquinhas, é preciso então que nos juntemos e realizemos um motim, onde cada um possa empunhar a arma que melhor souber manejar. 

Nos tempos atuais é necessário, não só aos jovens, mas a nós, ao homem, como um todo, que possamos ir além de idealismos e estados de utopia, é preciso que possamos ir além de nós mesmos com a mesma garra e raiva com que pensamos, outrora, provocar uma revolução. Nossa meta deveria ser sempre para o alto, porém, certamente nada nos protegerá de nossa própria estupidez e estúpidos temos sido já há um longo tempo.

Creio eu que é preciso haver progressos, mudanças e nesse caminhar da raça humana, muito ainda se perderá, muito ainda ficará para trás, as coisas são como são, mas nessa caminhada podemos construir, buscar um ponto de apoio, um “porto seguro” dentro e fora de nós. 

Gosto de imaginar; acredito mesmo nisso, que a aventura humana sobre a Terra não é em vão e quando chegar a hora e tudo aqui tiver que deixarmos, depois de termos descoberto quem ou o quê; somos, e tivermos feito do melhor modo a nossa parte, iremos ter ao lugar onde todas as almas, centelhas de luz, retornam, ao lugar de origem, de volta ao Grande Sol, um sol enorme, que brilha e ilumina todo esse vasto Universo. Acredito, creio mesmo que há perdão para tudo, para todos e para todas as coisas. Acredito, creio mesmo que o sofrimento, muitas vezes desnecessário, não é inútil. Não podemos, e talvez jamais possamos entender certas coisas que nos acontecem, todavia é-nos necessário seguir e completar a jornada que nos foi confiada. Em relação a esta parte, a raiva contida dos meus tempos de adolescente tem me ajudado a sobreviver e vou tentando reter o temor e o desassossego em meu coração de um futuro incerto para que minhas filhas, e outros, em meu entorno, possam acreditar que tudo há de melhorar. E para cada criança abandonada, molestada, assassinada, haverá o dobro de crianças felizes e satisfeitas. Para cada ser perseguido, roubado, caluniado, haverá o dobro em prosperidade, confiança e justiça. Beijo minhas filhas com a esperança de que tudo isso seja possível. Que a ilusão não seja o alimento preparado e servido para os que esperam e trabalham por uma boa e nutritiva refeição.

Sobre o ato de recordar, li certa vez um artigo, cuja intenção ou propósito foge-me a memória, (perdoem-me aqueles que o conhecem se aqui cometo alguma ignorância em relação a este assunto, pois o tal artigo já o li faz tempo) em que o autor afirmava que todo saudosista é um necrofilo já que vive; nutre-se de coisas mortas. Não concordo. Recordar é preciso. Recordar nos ajuda a manter-nos sãos e vivos. Recordar ajuda-nos a lembrar de nós; de quem ou o quê somos e por que estamos aqui. Viver na recordação, fazer disso a base de sua sustentação é que não é necessário, como bem dizia o poeta Fernando Pessoa: Navegar é preciso, viver não é preciso, pois a vida não possui precisão, exatidão, muda a todo instante... O segredo é o equilíbrio. Para mim, necrofilia, morbidez é não recordar, como se isso fosse possível, e numa espécie de autofagia, digerir-se a si mesmo, culpando a Deus e o mundo por isto ter lhe acontecido. Ah, querem saber, me desculpem o palavrório... todo esse discurso só porque ouvi Ramones em versão infantil... RAMONES FOR KIDS...

segunda-feira, 31 de março de 2008

PERDAS NECESSÁRIAS?!...



Melancólico abril, molhado de chuva!

*

Retire-se de meu coração, estás a me perturbar. 

*

Dizem que o lar de um homem é onde está seu coração, mas onde está meu coração. Já não sei...

*

Diz um ditado que "se Mohammed não vai à montanha, a montanha vai a Mohammed". Sei que muitos não tem tempo de parar e fazer uma leitura, e, eu, por minha vez, tomo por veículo a Internet para chegar mais perto ao público leitor, mesmo que nem sempre os resultados dessa expedição sejam satisfatórios. Mas, no que depender de mim, persistirei/insistirei nesta aproximação, que, apesar dos pesares, é extremamente valiosa. Abril, melancólico e chuvoso, começa amanhã, abrindo o mês, o famigerado"dia da mentira". Quisera eu que tudo o que me aconteceu neste mês, há quase exatos dois anos, não tivesse mesmo passado de uma grande peça, uma farsa descarada do destino, aonde o choro compulsivo, de repente, se transformasse em riso... meu "Abril despedaçado"... Próximo está o aniversário de morte de alguém que muito amei e que muitos no meio musical de minha cidade conheceram... e de certa maneira, pensem o que quiserem, porém, uma das coisas que movem um escritor é justamente a tentativa de clarear suas idéias, e, assim, as idéias de outros... é também uma tentativa de entender o porquê de certas ações praticadas pelos seres humanos... talvez, tal entendimento seja impossível, mas "buscar o impossível nos ajuda a conseguir aquilo que é possível".

Vou falar de perdas... Perdas são necessárias quase sempre, sabemos disso... Estamos sempre ganhando ou perdendo algo, seria o que diriam alguns, a “lei da compensação”, se é que isso existe. 

Pra se ganhar, se deve perder... o quê?... Eis a questão, pois hão de concordar que há perdas irreparáveis... Ao longo da vida, vamos deixando/perdendo/encontrando “coisas’ pelo caminho, é incrível o que vamos deixando/perdendo/encontrando/arrastando ao longo de nossa jornada... Falo “coisas” no sentido mundano, de objetos materiais, mas, também no sentido geral, como sentimentos e pessoas, tanto no sentido figurado quanto no literal... Pois há quem, literalmente, perca até gente, ou porque foram negligentes e se esqueceram de que havia alguém seu, dependente, à espera em algum lugar, ou seja, então, porque, por um momento de desatenção, fica, a partir daí, com toda sua vida pendente, presa a um ansiado desenlace do “o que foi que aconteceu?”, ou ainda, porque alguém que saiu pra “comprar um cigarro”, um doce, um pão... e pronto... nunca mais foi visto. Há quem suma por vontade própria, há quem seja levado, sequestrado do seu ambiente familiar por alguma causa obscura, mas, seja lá de que forma for, para mim não há nada mais terrível, nem a morte, do que um súbito desaparecimento (embora coloque os suicídios, os assassinatos e os genocídios no mesmo grau de terror e incompreensão) esse deve ser o pior/maior dos castigos, sejamos nós merecedores ou não de tal punição. Não existe consolo para esse tipo de dor.

Nada acontece por acaso, dizem alguns, dizem que tudo o que nos acontece tem suas razões... Talvez... penso que sim... Achei que podia terminar este artigo sem sofrimento, mas, na verdade, não posso... faço parte de milhões de seres no planeta que passaram por este tipo de dor e constrangimento. Conto, já disse, o suicídio como um desaparecimento súbito, o meu “ente querido” não desapareceu porque quis, nem foi levado por estranhos, porém, deu cabo de si mesmo, tirou a própria vida num momento de desatino. Aos que passam por isso, aos que recebem essa cota de infelicidade que a vida traz, que tenho a dizer? Nada... achei que teria... até por mim mesma, achei que teria e poderia citar milhões de exemplos, contar centenas de causos, escrever mil e uma histórias... mas, em meio ao artigo, percebi que não adiantaria...“Nada é para sempre”...nem a dor... a frase me recorda a mandala tibetana... uma linda e imensa mandala construída com grãos de areia fina e colorida que é destruída tão logo fica pronta... Eu sei que as dores, embora parecidas, não são as mesmas e eu rezo a Deus todo dia, pedindo para que isso não mais me aconteça; rezo a Deus todo dia, pedindo consolo para os que não conseguem se consolar de suas perdas. Acho que o melhor remédio para nós e nossos males, senão a cura pelo menos um meio de amenizá-los, é nos engajarmos pra valer na vida cotidiana, indo a fundo, nos interessando pelo que está acontecendo ao nosso redor, estando no mundo, mas, sem, contudo, a ele pertencermos. Esperando e trabalhando por dias melhores que certamente virão, devolvendo à nossa longa espera a sabedoria necessária em aceitar, enfim, que não somos os únicos “desamparados” do planeta e que nossas desditas possam, ao menos, aos outros, servirem de exemplos.

domingo, 30 de março de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA


CASA VELHA DE MINHA INFÂNCIA


Ainda trago dentro de mim uma casa velha pequena e pobre, toda de madeira, telhado de zinco e quintal grande, com pés de araçá, abacateiro, abieiro, goiabeira, com direito a gato, jabuti, papagaio e cutia. Bendita casa velha; pintada de azul, bem no meio de uma rua feia; rua de ladeira, barrenta e escorregadia, mas que apesar de tudo foi, durante anos, o melhor lugar do mundo. 

Na calçada vermelha, que ficou rosa e rachada com o passar dos anos, brincávamos de anelzinho, de roda, de pular corda. Nela balançava uma cadeira de macarrão em que se sentava meu pai para olhar o céu, antes punha um disco na vitrola e acompanhava o cantor, que bem podia ser Francisco Petrônio, Agostinho dos Santos, Angela Maria... e lá ficava até o anoitecer.

Casa velha de minha infância; cheia de histórias, casos, lendas, lembranças; as travessuras de meus irmãos, as festas, os dias de colégio, a família, os amigos, os ganhos, as perdas, as primeiras paixões e os primeiros enganos!

O tempo passou, me apaixonei, casei, tive uma filha, e mudei desta rua, mas não abandonei a casa de minha infância. Levei-a comigo, mas, vez por outra uma sombra a envolvia e embaçava meus pensamentos. No bairro onde antes vivia com minha pequena família, havia um vizinho, senhor de cabeça branca e olhos tristes, que sempre nos fins de tarde tocava as mesmas músicas que meu pai costumava ouvir e as cantava também; então, nesses momentos, feito magia, a sombra se desfazia, e ela, a casa velha, reaparecia em toda a sua pobreza e perfeição e isso trazia tristeza e alegria ao meu coração, pois via na figura deste senhor a alma de meu pai, e lá me sentia de volta ao começo.

Porém, o tempo, inexorável, passou outra vez, tive mais uma filha... Enviuvei e retornei para a rua feia, rua de ladeira, não mais barrenta e escorregadia, de novo a casa de meus pais, hoje uma construção de dois andares de tijolo, pedra e cimento, para o aconchego quente do colo de minha mãe viúva e embora a lembrança da casa velha de minha infância, misturada a dores e saudades mais recentes, ainda seja muito presente, às vezes, a sombra escura torna a envolvê-la e ela desaparece por algum tempo; mas só por algum tempo... Eis que realmente agora estou de volta ao começo de tudo, em todos os sentidos, sozinha, com duas filhas pra cuidar... Mas não me lamento. Vivi, e ainda vivo situações e sentimentos que há poucos seres são dados viver. A alegria não foi embora de todo, nem a intenção de fazer tudo, sempre, cada vez melhor. Esta lição de bem / saber viver, aprendi com meu pai e meu marido, continuo aprendendo de minha mãe e tento passá-las as minhas filhas, com a mesma certeza e o mesmo ardor que recebi desde os primeiros anos de minha vida.


Do livro Moronetá-Crônicas Manauaras; Virgínia Allan, Editora Valer 

sábado, 29 de março de 2008

UMA JANELA PARA A LUA


Eu tinha uma janela para a lua, uma janela toda azul salpicada de estrelas, mas um buraco negro a engoliu, e lá se foi minha janela e quase toda a minha vida também.  

De vez em quando em sonhos o gato risonho do País das Maravilhas [1] aonde certa vez, enquanto repousava, foi parar a menina Alice, de vez em quando ele aparece e se mete por dentro do buraco e dá-me aquele sorriso, um sorriso grande e iluminado, e assim eu consigo vê-la, apenas por uns instantes, trancada e virada de cabeça para baixo. 

As estrelas de minha janela toda azul, pobrezinhas, estão completamente apagadas, sem brilho algum, pois não é fácil viver na mais pura, crua e negra escuridão / solidão; não há brilho que resista, pois buraco negro que se preze, para poder manter sua fama de vilão não pode deixar nada sair de dentro dele, nem mesmo um fiozinho de luz. Em buraco negro, que segundo alguns estudiosos do assunto é tudo, menos um buraco, nada se vê e de lá nada sai.

É uma pena que eu só possa ter uma visão de minha janela toda azul, apenas em sonhos ou em pensamentos, o que vem, enfim, a dar no mesmo. Minha janela toda azul, salpicada de estrelas, inteiramente aberta para a lua, era assim como um porto seguro, minha fonte de inspiração e renovação, minha joia rara guardada no mais recôndito de meu ser, mas, que, entretanto, para o meu desalento, ficou para trás, em uma outra vida, e de vez em quando, no lamento da saudade, volto a rever / viver.

O buraco negro engoliu minha janela toda azul salpicada de estrelas escancarada para a lua arrastando também consigo dias iguais a estes, dias de sol, de chuva, de vento, de céu azul ou cinzento, que, para mim, no entanto, de um jeito ou de outro, foram dias mais felizes, ou talvez, eu, quem sabe, mais jovem e ingênua, tivesse maior capacidade de acreditar em mudanças, sempre para o melhor, que nos são proporcionadas pelo lento / veloz passar do tempo.


Costuma-se dizer que quando “Deus fecha uma porta, abre uma janela”, o meu caso foi o inverso, Ele fechou uma janela... mas, ainda acredito em mudanças, sempre para o melhor, tanto é assim que tento ficar de fora do campo gravitacional do buraco opressor, embora minha capacidade de crença no ser humano tenha diminuído bastante. Mas, afinal, contudo, porém, todavia, deixemos o passado descansar em paz. Nem tudo está perdido e como a esperança é a última que morre vale-nos lembrar que todo buraco negro já teve seus dias de estrela.



[1] Alice no Pais das Maravilhas; livro do autor inglês Lewis Carroll

POR QUE CONTO HISTÓRIAS?!...

Saiba amado meu, que eu conto histórias a fim de propagar a verdade; o amor e a gentileza entre os homens.

Quando falo destas coisas ou as tento expressar com minha pena, algo em mim se transtorna e percebo o alívio que sua exposição traz a minha alma e ao meu débil coração. Se a tristeza é um chamado de Deus, é um chamado muito difícil de escutar, uma vez que insistimos em esquecer o amor e valorizar a dor.

Para acompanhar meus relatos, faço uso da flauta e do alaúde. A melodia que sai destes instrumentos deixa o meu ser, um céu escuro clareado apenas pela lua, repleto de milhares de estrelas, pequeninas e brilhantes, e, nestes instantes, descubro aonde realmente se esconde a perfeição, e, é em teus olhos, amado meu, e a ti, somente a ti, ofereço a chave que abre a câmara onde se oculta o tesouro, ela jaz escondida sob minha língua em forma de palavras. Para o vulgo isso pode parecer estranho; mas, para o sábio a verdade se revela...

quarta-feira, 26 de março de 2008

ERRANTE


Era uma vez, há muito tempo, mas há tanto tempo que a própria palavra tempo era destituída de qualquer significado, existiam cidades cuja população era composta por toda sorte de gente, gente de todos os tipos e cores, de todas as alturas e de todos os tamanhos (altas, baixas, gordas, magras, gigantes, anões...) gente com todo tipo de aspecto, sentimento e disposição de caráter, gente com todo tipo de gosto e para todos os gostos, enfim, uma mistura variada e surpreendente, que, embora em menor quantidade espalhada sobre a face da terra, em nada diferia das que vivem nos dias de hoje.

Entretanto, apesar da grande diversidade de pessoas, havia um homem que vagava; errante, pelos quatro cantos do mundo, indo de cidade em cidade, pois se sentia extremamente só... e tão só se sentia este homem que buscava, buscava e buscava... não sabia muito bem o quê, somente que buscava alguma coisa e, nessa situação desequilibrada, causada pelo anseio de encontrar e dar um significado à própria busca, justificando assim a sua existência, se acomodou; comodamente só, mesmo estando entre, e, ao lado, de tantos outros tão buscadores quanto ele.

Todavia, certa feita, numa dessas curvas do caminho, encostou-se a uma pedra que não percebera estar quebrada e esta então lhe rasgou a pele, abrindo-lhe uma ferida.

Primeiramente ele pensou que esta ferida era somente uma conseqüência advinda das dificuldades impostas pelo caminho que havia escolhido e, por algum motivo, que mais tarde se esclareceria, a ferida estava ali. Então, seguro de que um dia entenderia outra vez se acomodou. Porém, tão só este homem se sentia que começou a acreditar que a ferida poderia ser uma solução, um remédio a sua solidão e assim pensando fez-se amigo de sua ferida.

Mas, com o tempo, a ferida principiou a desaparecer, já que havia se cumprido o seu ciclo reparador. O homem, ao ver que sua amiga o abandonava, se desesperava e, outra vez tornava a abri-la somente para não se sentir só.

No começo, usava um pedaço de madeira para se coçar; logo depois, um bico de pássaro morto e, a continuidade, seus próprios dentes. O homem sangrava e desse modo, não deixava a ferida se fechar, pois, em sua companhia, não se sentia tão só como antes.

Um dia, cansada de tentar em vão cumprir o seu ciclo determinado, a ferida, que era muito sábia, disse para o homem: 

“Escute-me... estou contigo há um longo tempo, mas, agora, preciso ir, preciso desaparecer. Conheço bem o teu desespero e a tua solidão; sei o quanto te sentes só e sei também que encontraste em mim uma companhia e, por isso, até o momento, tenho sido bastante tolerante para contigo, mas, para o bem de nós dois, chegou a hora de nos separarmos. Se continuares a manter-me aberta, sem fazer absolutamente nada, impedindo inclusive a passagem do tempo para que o mesmo me cure, começarei a crescer, e, pouco a pouco, tomarei todo o teu corpo, e sem dúvida, te matarei. Porém, se fizeres o que é natural de se fazer, isto é, se fores capaz de me lavares com cuidado, para que não deixe nenhuma cicatriz, permitindo que eu siga em meu caminho, distanciando-me de ti, aí, então, estarás agindo sabiamente e estarás, acima de tudo, te fazendo um favor ao transformar-te em um homem novo, pois, aquele que soube curar sua ferida, soube cuidar-se; soube entender-se, soube amar-se e um homem assim, que soube fazer tudo isso a si mesmo, certamente, jamais, nunca, estará só”. 

EL HOMBRE QUE SE SENTIA SOLO; Tradução e adaptação; Virgínia Allan

segunda-feira, 24 de março de 2008

NO MEIO DO REDEMOINHO



NO MEIO DO REDEMOINHO



A menina no meio do redemoinho
A ovelha no meio do redemoinho
O pastor no meio do redemoinho
O tempo no meio do redemoinho

A menina chora
A ovelha bale
O pastor se cala

O tempo dança
 

No meio do redemoinho

A criança expirou
A ovelha se perdeu
O pastor nada encontrou


No meio do redemoinho
O tempo, que era pouco, se acabou


Do livro RÉQUIEM; Virgínia Allan, Editora Scortecci

sábado, 22 de março de 2008

A BUSCA





Na ânsia de encontrar o Amigo, demorei-me à beira do abismo; meus olhos ardiam, mas, não cansavam de O procurar e meus lábios, ressequidos, não cansaram de O chamar. 
Na ânsia de encontrar o Amigo, vaguei perdido, noite e dia, perambulando por todos os caminhos, mas Ele não estava por onde andei.
Na ânsia de encontrar o Amigo, tateei na escuridão, clamei e chorei. Mesmo assim, Ele não teve piedade e para mim não voltou a Sua face. 

Na ânsia de encontrar o Amigo, não pude me calar, e, fui consumida pela dor. Meus dias foram somente pena e solidão.
Na ânsia de encontrar o amigo, despojei-me de tudo e vestido de andrajos,  mergulhei na aflição. Humilhado rastejei-me diante de Sua porta.
Quando, porém, meus apelos foram atendidos e o Amigo surgiu diante de mim, tive medo, e, tentei retornar sobre meus próprios passos, mas senti o peso de Sua mão e o terror dominou meu coração.
Ele me perseguiu com o fogo nos olhos e a violência das tempestades. 
Fui aniquilada por Seu beijo. 
A visão resplandecente do Amigo, me matou.


sexta-feira, 21 de março de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA - PARÁBOLA



Ao doente, a água doce em sua boca, possui um sabor amargo” (El Mutanabbi)


PARÁBOLA 
 

Sexta-feira da paixão de Cristo... chove lá fora... outra vez... e só a chuva corta o silêncio que paira na rua. Dentro de casa, o barulho da televisão e os brinquedos de minha filha espalhados pelo chão. Na cozinha, o cheiro de comida... Sexta feira da paixão... Em outros tempos, era muito diferente...
Apesar de ter sido criada dentro da religião católica, faço parte do grupo dos “não praticantes”, não por descrença, não por ser destituída de fé, mas, sim pelo simples fato de querer mais do que a religião socialmente estabelecida pode me dar. Não entrarei em detalhes dessa minha busca pela verdade, é pessoal demais, quero aqui, nesta sexta feira da paixão, contar uma história, um episódio da vida de Isa Ibn Mariam, ou Jesus filho de Maria bem pouco conhecido, relatada pelo filósofo sufi do século XII, Imã Al-Ghazali
[1].

Jesus, filho de Maria, um dia, viu algumas pessoas em estado de lamentosa miséria, sentadas sobre um muro, e dirigindo-se a eles, perguntou: “O que lhes aconteceu?”.
No que então lhe responderam: “Nos reduzimos a este estado por puro temor ao inferno”.
Jesus continuou sua caminhada e mais adiante, à beira do caminho, viu umas pessoas perdidas, desconsoladas. Ele novamente se aproximou e lhes perguntou: “O que foi? O que lhes aconteceu?”
“Nos reduzimos a esse estado por almejarmos ardentemente o paraíso”.
Jesus retomou sua jornada e seguiu assim até deparar-se com um terceiro grupo de pessoas, que, pelo aspecto, pareciam haver sofrido muito, entretanto, seus rostos mostravam uma alegria incomum, resplandecente: “O que foi? O que lhes aconteceu para deixá-los assim?”
E eles responderam: “O Espírito da Verdade. Vimos a REALIDADE e esquecemos de nossas metas mesquinhas”.
Disse Jesus: “Estes são os que chegam. No dia do Juízo certamente estarão em presença de Deus”.

Termino meu artigo, deste modo, com as palavras do jovem Rabi Isa Ibn Maryam, ou Jesus filho de Maria, que sofreu na cruz para a remissão dos pecados de pobres, miseráveis e indiferentes mortais, que temem o inferno, almejam o paraíso, e pouco aprendem com o sofrimento... e se esquecem que todo dia é um renascimento,uma ressurreição, uma constante renovação da vida por completo, por inteiro.


[1] EL CAMINO DEL SUFI, Idries Shah, 1986, Ediciones PAIDOS

quinta-feira, 20 de março de 2008

VÁRIOS TONS...


Saudades, meu amor.
Onde estás? Estás a dormir,
comigo a sonhar?




VÁRIOS TONS...


Música; poesia; cor; amor; alma e coração...; solidão. Um pátio vazio; um quintal com flores. Vidas entrelaçadas... para sempre, amor... filhos, aconchego do lar; estudos; trabalho; compreensão... cansaço... dores, fuga; rotina... cortinas; cortinas de fumaça; brilho de seda; brilho de uma estrela que, de repente, passa; nuvem; ilusão... A obra inteira do Led Zeppelin; Wild Horse, dos Stones; Você é linda, do Caetano...; Dó, Ré, Mi... uma clave de sol... cadê o sol? O inigualável Jimmy... Anos 70 na veia; Tropicália, a vida inteira... rock ‘n’ roll; jazz; blues e sedução...“quebra um”... quebra... quebra... coração... cigarro aceso... black... black... black baby...black music; black... Miles Davis; Nina Simone... Blue Note... Pastorius; Nico Assumpção.. tom.. acerta o tom... Tom Jobim, o maestro e uma canção; uma canção para Luisa... Luisa... suave brisa... Um instrumento... lições; faculdade... lições; Brasília... sonhos e lições...; AnnaClaraLua; o Baby sol... baby soul... baby show... ainda pergunta por você.... sábado de manhã; domingo de manhã... descanso, futebol e corrida de Fórmula 1.. Fantástico, o show da vida... mas, “dinheiro na mão é vendaval” “e lá se vai mais um dia”... de lenta agonia... e na Tulipa Negra é servido o Veneno da Madrugada, mesclado a muita Soda e muito pó... pó de mico... tim... tim.. Fim da linha... amigo...
Agora não há mais o que temer, o sol já se pôs; The Songs Remains the Same, mas “O SONHO ACABOU”.



Do livro RÉQUIEM; Virgínia Allan, Editora Scortecci


terça-feira, 18 de março de 2008

AFORISMOS


“Toma como exemplo as desgraças dos outros,
para que os outros não necessitem tomar as tuas como exemplo”.

Saadi, O Jardim das Rosas (séc.XIII)

***
“Quando o camelo de nossos esforços se afunda no lodo,
o que importa se nosso destino está perto ou longe?”

***
“Em qualquer estado, o coração é o meu amparo. No reino da existência é o meu soberano.
Quando me canso da deslealdade da razão... Deus conhece minha gratidão por meu coração”.

Ustad Khalilullah Khalili
Quatrains (1975)


MAR DE ESTUPEFAÇÃO



Mergulhada em um mar de estupefação, assim é que me sinto e certamente não só eu, mas quanto mais vejo, quanto mais ouço, quanto mais eu vivo, mais fico estupefata diante de tudo.

Entretanto, essa minha estupefação, que bem poderia ser um estado de encanto relativo à felicidade com os progressos que vamos fazendo em nossa evolução material e espiritual, infelizmente, é um estado de total paralisação diante do horror, da brutalidade e da banalidade da qual estamos cercados e de certa maneira condenados a viver, conviver, com todos obedecendo de forma literal os antigos ditados do tipo: “Quem for podre que se quebre”; “Cada macaco no seu galho” e outros afins... É uma pena que nos dias de hoje a frase “não vejo, não ouço, não falo” seja a cartilha pela qual rezamos todos. Isolados, pedimos proteção aos anjos e demônios; desejamos a intervenção divina e extraterrestre; andamos com guias, terços e amuletos, mas, sabemos que nada disso nos adianta; nada disso nos salva, para a verdadeira proteção o que nos adiantaria mesmo seria, sim, o entendimento, a união e a solidariedade (esta então cada vez mais rara, cada vez mais distante de nós) entre as gentes, isso sim, nos protege, isso sim, nos dá poder. Sozinhos, somos vulneráveis, "quase" impotentes. Pouco, quase nada podemos fazer diante do perigo de uma realidade que de repente torna-se sem sentido, parecendo mais uma espécie de sonho ruim, pesadelo delirante do qual tentamos desesperadamente fugir, escapar, acordar... Para onde? Para os braços protetores de quem? Temos a humildade suficiente para reconhecer que estamos com medo; que vivemos com medo? Como nos proteger? Como pedir ajuda se mal podemos andar nas ruas? Uma espécie de confraria cujo interesse visasse o bem estar de todos, poderia ajudar? Sofremos de excesso de orgulho e abusamos de nossa auto-confiança... Prepotência ou ingenuidade, pura e simplesmente? Só nos mobilizamos quando somos pessoalmente atingidos, se isto acontece, ai, sim... saímos em passeatas, fundamos ONG’S, gritamos e choramos... Abramos os olhos, estejamos atentos, a dor do outro é também a minha, a nossa dor. Abramos os olhos e estejamos atentos antes que sejamos todos vítimas do caos que ameaça nos devorar.
Em uma situação extrema em um bairro qualquer de qualquer cidade deste nosso país, quiçá, do mundo, seja ele periférico ou não, cuja vizinhança é quase parede com parede, e, alguém, dentro de seu próprio território, no recesso sagrado de seu lar; seja invadido em sua privacidade em todos os sentidos e surpreendido por um terror inimaginável, inesperado, é incompreensível ouso dizer, até mesmo inadmissível que ninguém veja ninguém ouça, ninguém saiba de nada. Pronto! Está consumado?!Voltemos a pôr a cabeça no buraco, como faz o avestruz, voltemos a nossa vidinha mesquinha, cuidemos de nossos afazeres; voltemos a nossa alienação e falta de consideração, afinal, o que poderíamos fazer? Por isso não nos adianta apontarmos culpados, pois culpados somos todos, coniventes com a omissão, a injustiça e desamor que reinam entre os homens. Tudo o que fazemos e dissemos, soa-nos falso; uma forma de amenizar, de nos desculpar daquilo que, lá no fundo de nós mesmo, sabemos sermos também culpados.

Não podemos parar o mundo e pedir para descer, como dizia uma canção do Raul, mas muito me impressiona a falta de solidariedade, indiferença e o cinismo com que damos prosseguimento a nossa vida Realmente estou mergulhada em um mar de estupefação, espero apenas nele não me afogar, já que não sei nadar. Dentre tantos candidatos a “salvador da nação” haverá um com motivos realmente justos?

PAZ E AMOR




Para que a paz
possa ser constante,
vivamos a vida
e celebremos os sonhos,
poupemo-nos a dor
e desfrutemos o amor,
o amor irmão,
o amor amigo,
o amor amante,
o amor humano,
o amor divino.




Do livro RÉQUIEM, Virgínia Allan, Editora Scortecci

sábado, 15 de março de 2008

A FORMIGA E A CIGARRA





Ilustração by Jean Okada





Canto 1


No inverno, as formigas puseram a secar os grãos molhados pela chuva.
Uma cigarra faminta reparando na fartura espalhada em volta do formigueiro, se aproximou e lhes pediu algo para comer. Porém, as formigas lhe perguntaram:
“Onde estão as tuas provisões? Não guardaste nada durante o verão?”.
“Oh, eu cantei o verão inteiro”, respondeu a cigarra, e não tive tempo de guardar provisões.
“Cara cigarra! Tiveste tempo para cantar, agora tens tempo para dançar”.
Assim lhes disseram as formigas, e então se foram, rindo sem parar.

(Esopo [1])



Canto 2

Verão!

Trabalha a formiga, canta a cigarra.
Inverno!
A fome a porta bate; morte fria; vazia.
Primavera!
A formiga, um novo ciclo começa.
No bosque silencioso não canta mais a cigarra!


Canto 3


Tudo começou num ensolarado dia de verão. No alto da árvore mais alta da floresta de lugar nenhum, feliz, cantava uma cigarra. Despreocupada com o dia de amanhã, ela não fazia qualquer espécie de plano. Na verdade, o futuro pouco lhe importava. Sua única preocupação durante toda aquela estação, era não desafinar e desfrutar a vida ao máximo.
Logo abaixo, ao pé da árvore, havia um imenso formigueiro, cujas habitantes não paravam de trabalhar, recolhendo e armazenando provisões para a chegada do inverno.
Uma longa fila de formigas resolveu subir na árvore em que cantava a cigarra e ver o que mais podiam carregar. No sobe e desce que se seguiu do formidável batalhão, a cigarra não cessou de cantar e uma das formigas, ao percebê-la assim, tão distraída, disse-lhe: “Reconheço, amiga cigarra, como teu canto é bonito e alegre, mas porque não deixas disso um instante e vem recolher para ti as provisões necessárias para a chegada do inverno?”.
“Que ousadia!Quem pensa que és para falar comigo dessa forma? Põe-te em teu lugar, formiga operária. Tens é inveja, pois não sabes cantar. Vai-te daqui e me deixa em paz. Recolhe-te à insignificância de tua vidinha sem graça. Trabalhas tanto e para quê? Tu tens um objetivo? Ótimo, pois faça bom proveito.. Eu cá não tenho nenhum. Se bem conheço as formigas, tal objetivo deve ser tão inalcançável quanto à lua... Quanto a mim, persigo a felicidade, e felicidade é prazer, e prazer é comer, beber dormir e cantar, cantar, cantar...lá-rá- lá-lá.”
A orgulhosa cigarra logo deu a conversa por encerrada.
A formiga não disse mais nada, apenas pensou lá consigo. “Que mal educada...! É! Não temos mesmo mais o que conversar. Eu vejo uma coisa; ela vê outra. Seguirei meu caminho. Pelas leis da natureza, a cigarra sabe o que pode lhe acontecer.”
Então, certa de que havia feito o que estava ao seu alcance, a formiga se foi.
Algum tempo depois, o Inverno, velho senhor tenebroso, sobre a floresta de lugar nenhum, estendeu seu manto de silêncio e escuridão. Os animais, rapidamente, fugiram para a segurança de suas tocas, deixando do lado de fora apenas o vento frio que soprava tristemente.
No formigueiro, com todas as coisas em seus devidos lugares, as formigas esperaram com tranqüilidade o inverno passar.
A desditosa cigarra, não mais conseguindo achar abrigo e comida, sofreu terrivelmente e não suportando mais o frio, morreu.
O Inverno, após cumprir o seu tempo determinado pela natureza cedeu passagem à ditosa primavera.
A alegria voltou a reinar na floresta de lugar nenhum. Os pássaros inventaram novas canções, fazendo seus recitais por entre galhos e folhas das árvores. Mas, subitamente, notaram a ausência da cigarra.
“Onde estará essa danada orgulhosa? Como será que passou o inverno?”
Procuraram-na em todos os cantos e nada, até que, finalmente, resolveram desistir.
As formigas, também saíram do seu sossego. Um novo ciclo começava e elas precisavam, novamente, se preparar. Aquela pequenina que antes se avistara com a cigarra, quase quebrou o delicado pé ao tropeçar em algo semi-enterrado à porta de sua casa. Retirando o resto de neve que ainda o cobria, não com surpresa, reconheceu o corpo sem vida da cigarra.
“Pobre cigarra! Tão orgulhosa!” Pensou a formiga, soltando um profundo suspiro. “Quando a avisei achou que eu só queria lhe estragar o prazer e a alegria. O que lhe parecia importante, agora, acabou. Quanto a mim, devo prosseguir com o meu plano e como ela está tão bem conservada, ainda me servirá durante muitos dias como alimento”.
Então, a formiga, arrastando consigo o corpo da cigarra, entrou de volta ao formigueiro.


[1] A CIGARRA E A FORMIGA; FÁBULAS, 1997, Esopo, L&PM POCKET Editores.
A CIGARRA E A FORMIGA: Do livro RÉQUIEM, Virgínia Allan, Editora Scortecci

sexta-feira, 14 de março de 2008

DAS PROFUNDEZAS DO RIO[1]

Na floresta de um paraíso / inferno verde de uma grande planície, às margens de um rio-mar, vivia um caboclo muito pobre em uma estaca de palafitas..
Todo o dia, antes do amanhecer, para garantir o seu sustento, ele andava floresta adentro a recolher frutos, flores, mel, raízes e sementes, o que fosse para vendê-los no povoado que ficava do outro lado da margem, voltando para casa somente ao entardecer, lá sempre aparecia gente que vinha da cidade grande ou do estrangeiro, que gostava de beber, comer e apreciar “coisas diferentes”.
No caminho de volta, o caboclo, ao atravessar novamente o rio, atirava na correnteza tudo aquilo o que não havia vendido.
Um dia, choveu, choveu tanto, uma chuva daquelas.... torrencial, ali naquele mundo, isso acontecia muito, e, a travessia de costume tornou-se impossível, pois o rio enchera e apresentava violenta correnteza.
Sem saber o que fazer o caboclo nem se mexeu e ficou parado, só olhando. Ficou assim nessa pasmaceira durante algum tempo, quando então viu o danado de um boto vermelho vir ao seu encontro: “Venha amigo, precisas chegar ao outro lado. Se aceitas minha ajuda monta em minhas costas”.
O caboclo não se espantou ao ouvir falar um boto, ali naquele mundo isso acontecia muito, e depois já ouvira tantas coisas sobre aquelas criaturas; seres encantados da floresta, que só pensou que esta ajuda, que em tão boa hora lhe era oferecida, era mais do que bem vinda. Mas tão logo se acomodou em cima das costas do boto, o bicho, nadando rapidamente mergulhou, desaparecendo nas profundezas das águas.
Num abrir / fechar de olhos, mais rápido do que digo a palavra cisco, chegaram a um lugar muito estranho, porém belíssimo, aonde uma casa suntuosa, um verdadeiro palácio, erguia-se, resplandecente, e cuja dona era nada mais nada menos, que a Yara, a mãe d’água
Dentro dessa casa maravilhosa a bela senhora de cabelos negros e sorriso encantador, os aguardava e mal os viu chegar, pediu ao caboclo que se aproximasse e saudando-o calorosamente lhe agradeceu pelos presentes que todos os dias lhe traziam as águas do rio: ”Bem vindo sejas, meu amigo, ao meu reino, eu sou a Yara, a mãe das águas”. Disse ela. “Vem, aproxima-te, pois tu és o responsável pela beleza e alegria que enfeitam os meus dias”.
Depois, a mãe d’água, após fazê-lo sentar-se ao seu lado, bateu palmas três vezes e mandou que a festa começasse com delicadas melodias e harmoniosas danças de peixes e ainda um grandioso banquete. Encantado, o caboclo permaneceu ali por um longo tempo.
Todavia, tudo, um dia, seja bom ou ruim, chega ao fim e assim o hóspede, maravilhado e agradecido, decidiu que deveria retornar para casa. Foi ter com a Yara e lhe disse: “Mãe d’água é chegada a hora de voltar para casa a fim de cuidar do que é meu. Embora ame este lugar e a tua bonita presença, é com pesar que te digo que devo partir”. A Yara, após ouvir aquelas palavras de despedida, mandou que este esperasse um instante e ordenou que trouxessem à sua presença um curumim vestido apenas com uma tanga: “Amigo, vou pedir-te um favor. Cuida bem deste curumim. Se assim o fizeres, ele fará com que teus desejos se tornem realidade”.
O caboclo aceitou a tarefa e voltou para casa na companhia do curumim. Porém, ao chegar lá, deu-se conta da imensa pobreza de sua choupana e da extrema solidão daquele lugar. Recordando-se das palavras da mãe d’água, pediu ao curumim que mudasse tudo. Não precisou se repetir... Imediatamente, o pequeno, batendo palmas três vezes, transformou a palafita em uma magnífica construção, ricamente adornada, bem no meio da praça principal da cidade.
Eis que então, o tempo passou e o caboclo logo se acostumou aos rapapés e a vida boa, cheia de luxos, que o dinheiro lhe proporcionava. Tomou gosto. Agora tinha muitos amigos e o que comer não lhe faltava. Ao contrário, quase toda a noite dava um banquete e enchia a casa de música e gente. O orgulho se instalou e em breve o fez se esquecer completamente de sua origem humilde e foi exigindo, a cada dia, uma maior quantidade de coisas, e ali, num lugar tão esplendidamente luxuoso que era o seu palacete, o homem principiou a achar que o curumim, coberto somente pela tanga, não lhe ficava nada bem. Levou-lhe uma roupa bonita para que a vestisse e o curumim recusou-se dizendo que era feliz do jeito que estava.
O caboclo se aborreceu e por fim, chegou à conclusão de que já possuía tudo o que queria e sugeriu ao curumim que voltasse ao fundo do rio, coisa que o curumim se negou a fazer, mas ao ver o caboclo contrariado, concordou em partir.
Foram ambos então, caminhando pela elegante avenida que os separava da beira do rio. Não demorou. Ao chegarem, o curumim lançou um último olhar ao caboclo, misto de pena e adeus.
O caboclo, por sua vez, suspirando de alívio por ter conseguido se livrar daquele menino tão insolente e inconveniente, voltou cantarolando para casa. Porém, ao chegar, para sua total estupefação, a mansão suntuosa havia desaparecido inteiramente. Em seu lugar estava novamente a velha estaca de palafitas, na erma solidão da floresta; olhou para si e viu que suas ricas vestes foram substituídas pelas mesmas roupas de antes quando, outrora, era apenas um simples caboclo lutando por sobreviver. Percebendo o seu erro, o infeliz correu desesperado em direção ao rio, chamando pelo curumim. Mas era tarde demais... O curumim também havia desaparecido



[1] DAS PROFUNDEZAS DO RIO é reconto do conto O menino do palácio do dragão, do livro Histórias da Tradição Sufi; textos compilados e organizados pelo Grupo Granada de Contadores de Histórias; 1993, Edições Dervish.

A HOSPEDARIA





Jalaludin Rumi

O ser humano é como uma hospedaria. Cada manhã uma nova chegada, uma alegria, uma depressão, uma mesquinharia... Tal qual inesperados visitantes, dê boas vindas e receba-os, ainda que seja uma multidão de tristezas, que, violentamente, devasta tua casa, deixando-a desmobiliada... Mesmo assim, trate a cada hóspede com a devida honra. Ele pode estar a preparar-te para alguma presente alegria. Os negros pensamentos, a vergonha, a maldade, sorrindo, receba-os à porta e os convide a entrar. Seja agradecido a cada um que chegar, porque cada um te foi enviado como uma proteção do além.






quarta-feira, 12 de março de 2008

SIMPLESMENTE MULHER




Este poema é dedicado a P. que, em um dia de costumeiro mau-humor, entre uma multidão de textos e autores, escolheu a mim para destratar; escolheu a mim com quem ser desagradável, e, no comentário que se seguiu ao poema que eu tinha escrito, bem simples, bem fácil, disse que minhas rimas eram chatas / fracas e o título, pior ainda, puro clichê.

Mas, sabem, vamos ser razoáveis, sei de P. duas ou três coisas que vocês não sabem e que enfim, não serão ditas aqui ... P. não me abalou com sua opinião... P. ao contrário, me clareou as ideias e a argumentação. De P. posso apenas dizer que ele “se acha”, sim... P. é o tipo do cara que “se acha” e “acha” o máximo ser chato, “acha” o máximo ser desagradável... Um cara que “joga” e provoca apenas pra sacudir o marasmo de seu viver... Que fazer? P. é um cara em corpo de homem, mas com a mentalidade de um menino, lembrem-se que sei de P. duas ou três coisas que prefiro nem falar, posso apenas dizer que P. se recusa a crescer, sente medo de sair, abandonar a Terra do Nunca... P. quer ser Peter Pan... P. se recusa a ser SIMPLESMENTE HOMEM.

Não falo assim de P. porque não gostou de minhas rimas ou do título tão lugar comum de meu poema, P. me causa mágoa por ser um cara destituído de generosidade, de solidariedade, de emoção e, embora P. seja este sujeito tão tristonho / medonho P. tem muita sorte... P. tem alguém que o ama de verdade, pasmem... P. é amado por uma MULHER / esposa / amante que o aceita do jeito que é... P., que achou minhas rimas chatas / fracas e o titulo clichê de meu poema pior ainda, vive a mais “clichê” das situações... UM AMOR SINCERO... P. achou sua cara metade, sua alma gêmea, sua outra parte da maçã, e, apesar de tudo, apesar de ter e viver algo que muitos querem e sonham, P. é um terror...“acha” o máximo ser assim, e sente vergonha de “um amor tão delicado” que lhe é dedicado, não o reconhece, despreza / esquece aquela que está ao seu lado e ousa ser SIMPLESMENTE MULHER...


Mulher no canto
Mulher encanto
Mulher desencanto
Mulher espanto
Mulher nem tanto

Mulher ingrata
Mulher grata
Mulher gata
Mulher rata
Mulher cheia de graça
Mulher desgraçada
Mulher descabelada
Mulher desengonçada

Mulher distante
Mulher amante
Mulher cortante
Mulher tratante
Mulher irritante
Mulher fascinante
Mulher mutante

Mulher forte
Mulher fraca
Mulher primeira
Mulher segunda
Mulher terceira
Mulher caseira
Mulher altaneira
Mulher festeira
Mulher brincadeira

Mulher velha
Mulher sábia
Mulher fada
Mulher chata
Mulher amada
Mulher bala
Mulher pacata
Mulher mal-amada

Mulher sofrida
Mulher vadia
Mulher da vida
Mulher cantiga
Mulher poesia

Mulher demente
Mulher presente
Mulher ausente
Mulher doente

Mulher boa
Mulher boba
Mulher “loira”
Mulher à toa

Mulher nova
Mulher formosa
Mulher gostosa
Mulher fogosa
Mulher aurora
Mulher da hora

Mulher nobreza
Pura certeza
Vestida de mistério
Revestida de grandeza
Despida de sutilezas

Mulher vento
Mulher terra
Mulher fogo
Mulher água

Tempestade que desaba
Noites tormentosas
Dias de calmaria
Dias de bonança

Amargas / doces lembranças
Mulher esperança / refúgio
Do homem fraco / forte / rico / pobre
Vil / apaixonado / poderoso / inconstante
Que mesmo falho / medroso / fervoroso / vacilante
Não deixa de ser nunca o pai / o filho / o amante.

segunda-feira, 10 de março de 2008

CHUVA, MELANCOLIA E IDÉIAS FIXAS



Hoje chove, o tempo traz consigo toda uma carga emotiva que tento transpor. Para passar este dia tão melancólico, os céus me compensaram, apesar da chuva, e recebi duas boas notícias. Como escrevi uma vez, boas notícias são para serem compartilhadas, já que boas noticias nunca são totalmente particulares. Estou feliz, sim, mas em parte, há na feitura do dia um pretexto qualquer para me sentir infeliz.

As nuvens, carregadas de água, parecem mulheres grávidas, prontas a parir, eu, me sinto grávida também... de idéias... que se chocam, se tocam, se cumprimentam, se namoram, se casam e procriam, iniciando um novo ciclo... um novo ciclo de idéias que se chocam, se tocam, se cumprimentam, se namoram... enfim...

Às vezes arrumar as idéias não é muito fácil. De tanto pensar nelas acabamos por ficar maníacos. Idéias fixas são deveras um transtorno, um monstro que cresce, se avoluma se agiganta dentro da mente. Estou cheia de contos inacabados simplesmente por ter uma idéia atrás da outra e o tempo, esse tempo melancólico, saudoso, só piora as coisas, influindo em meu estado de espírito. Já gostei mais de dias de chuva, agora ando ansiosa mesmo é por um belo dia de sol daqueles bem quente que costumam deixar a gente de mau-humor. Bom, se fosse ao contrário, talvez estivesse escrevendo uma crônica a favor da chuva, mas como o sol ainda não deu o ar de sua graça.. fiquemos de implicância com ela... Sim, só implicância... cada estação têm sua beleza... sol, chuva, alegria, melancolia, tudo tem seu valor... até minhas idéias fixas. Estou tentando ordená-las e aproveitá-las e se possível, superá-las sem ficar doente... Huummm... doente já estou... uma gripe horrorosa que ainda não completou o seu ciclo e insiste em me tirar o sono... fico deitada na cama, no escuro, de nariz entupido, pensando, pensando, pensando.... e cada pensamento, um novo conto, um possível romance...

Cantilena do Corvo

EE-SE BLUE HAVEN

Ee-se encontrou Ahemed na saída de Hus. Dirigia-se ela aos campos de refugiados, nos arredores de Palmira, enquanto Ahemed seguia com seu pa...