Segundo os índios Kamayurá, Moronetá é toda forma de explanação verbal ou narrativa, mas que pode ser também visual. Moronetá é como o espelho, refletindo uma realidade de uma outra ordem, diferente daquela na qual julgamos viver.
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Escuta piá [1], a estória que vou contar. Há muito tempo eu queria fazer isso, mas tu não me davas ouvidos. Sempre entretido com a televisão, com os videogames ou com o computador. Hoje, que consegui te pegar num instante de devaneio, aproveitarei. Vem cá esquece um pouco estes teus amigos e senta aqui comigo no jupá [2]. A janela está aberta e assim poderemos apreciar a paisagem.
Em que pensavas antes de eu chegar? Estavas triste? Por que, piá?
Não ouves mais o canto da cigarra? É! Também eu, aqui, já não a escuto. Só quando penetro nos confins da floresta. Mas, se serve de consolo, ainda se ouve o cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos.
É noite! Lá fora, o vento passa sussurrando antigos segredos. Estava tão ansiosa para te contar a história que agora nem sei por onde começar.
MORONETÁ
Num tempo sem tempo, ainda na aurora do mundo, um curumim [3] vagava perdido pela floresta.
Depois de muito andar, chegou, por fim às margens de um lago, onde se sentou para descansar e matar a sede, mas, ao inclinar-se...''erê!'' [4] Assustou-se. Havia um outro menino dentro do lago. ''Como ser isso?’’ Pensou. Recuou, desconfiado. Mas, a sede era tanta que resolveu aproximar-se novamente. Devagar, inclinou-se, e só então percebeu que era ele mesmo refletido nas águas calmas.
O curumim, de assustado, passou a apreensivo. Nunca vira nada parecido, pois na taba onde morava a fonte possuía água escura como a noite.
''Kaáguara [5] brinca comigo. Roubou minh’alma e deu para os espíritos das águas.''
E foi assim que, tratando de recuperá-la, mergulhou no lago, transformando-se no mesmo instante, num pequeno e colorido pirá [6].
O peixinho nadava solitário e sempre subia à superfície, tentando, aos saltos, alcançar às suas margens. Nem sabia direito porque fazia aquilo, mas algo o impelia a fazê-lo. De dentro do lago olhava, com olhos tristes; para um estreito caminho que lhe parecia tão conhecido, porém, não demorava muito cuidando do assunto; logo mergulhava de volta e recomeçava a nadar, pra lá e pra cá, pra cá e pra lá...
Uma tarde, porém, em que jasytatá uasú [7] surgia linda e brilhante no céu, o peixinho conseguiu lançar-se para fora do lago e, no mesmo instante, voltou a ser menino. Olhou ao redor, procurando o estreito caminho que agora sabia estar escondido entre as árvores. O peixe esquecera que na verdade, ele era um menino, mas o menino não esqueceria jamais, que um dia, havia sido um peixe e graças a esse estranho fato encontrara o caminho de retorno.
Teria uma estória para contar ao redor da fogueira, naquelas noites vazias em que os velhos esperam a morte chegar. As crianças a ouviriam, e depois a contariam aos seus filhos, que, por sua vez, a contariam para os filhos de seus filhos que...
''Certa noite de lua, o nosso vovô, o valente guerreiro Curumim, mergulhou num lago de águas mágicas e virou um enorme pirá. Tão grande tão grande era o nosso avô, que virou rei!''
E o menino seguiu contente caminho afora, direto para casa, rumo à Grande Aldeia das Aves de Penas Brancas.
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[1] piá: criança
[2] jupá: esteira
[3] curumim, colomi ou coromim: menino, rapazola.
[4] erê: interjeição que exprime espanto, surpresa, alegria ou mofa. Usual entre os índios e caboclos da Amazônia
[5] Kaaguara: Habitante do mato. Espirito do mal que constantemente prejudica os índios em seus afazeres.
[6] pirá: peixe
[7] jasytatá uasú: estrela grande. A grande estrela da manhã e da tarde.
Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Editora Valer
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