Para Clarice
Então Clarice, o assunto agora é Carnaval? Bela lembrança...! Pena que eu não guarde nenhuma em especial dos carnavais passados, nenhuma tão delicada quanto a tua, dessa época da infância. Abro e fecho as gavetas da memória, reviro-as e nada encontro de relevante. Estudava em colégio de freiras e o Carnaval para nós era um tempo de recolhimento e oração. Entediava-me e ficava torcendo em agonia para que logo chegasse “a quarta-feira ingrata”, a quarta-feira de cinzas, quando tudo então chegava ao fim. Na quarta-feira tudo se aquietava tudo se acalmava, até a natureza, tudo se recolhia em descanso, num silêncio respeitoso. Respeito a quê? A morte da “alegria”, que era preciso acabar para que tudo voltasse ao normal. Recordo-me ainda desses dias de festas, e das vezes em que víamos alguma coisa, como os blocos de sujo, passando em plena algazarra por dentro das ruas do bairro, jogando para todos os lados confetes e serpentinas. Achava linda a chuva de confetes e as serpentinas atiradas a esmo, eram como que laços que prendiam o expectador ao folião, unidos na mesma alegria nem tão barata assim. Lança-perfumes, já por esse tempo; usava-se muito pouco devido a proibição, mas os confetes coloridos que enfeitavam as ruas e calçadas, uma vez lançados eram re-reunidos em pequenos montes e lançados com euforia pela criançada, sucedendo o mesmo às serpentinas que ficavam dependuradas em fios ou galhos de árvores, balançando ao sopro do vento, como que pedindo para serem puxadas de onde estavam enroladas novamente e atiradas a uma longa distância até por fim acabar sua curta existência. Aos bailes infantis também nunca fui e fantasias só aquelas que eu vestia em minha imaginação. Ai, Clarice em meu tempo de menina fui sedenta como tu e nessa sede insensata absorvia a energia estranha e poética que saia da vida dos outros, pois, para mim só havia a alegria dos outros (uma alegria, aliás, que eu pouco entendia) e as máscaras não me metiam medo... o que eram máscaras de brinquedo diante das máscaras que realmente recobrem nossos rostos? Aprendi muito cedo a distingui-las. Aprendi muito cedo que as pessoas e seus mistérios, encantam e desencantam, as pessoas e seus mistérios fizeram dar-me conta do meu próprio mistério que de tão escondido era insuspeito em mim. Por muitos anos Clarice, não tive em casa ninguém doente, como tiveste tu em teus dias de infância, mas mesmo assim não pulávamos Carnaval (quero dizer nós, as meninas) entretanto, meus irmãos, os dois maiores, rapazolas, corriam soltos participando de tudo quanto era jeito. Liberdade não lhes faltava nunca; fosse Carnaval ou não, mas eu não lhes tinha inveja. Tinha meu próprio mundo. Usei uma vez um vestido de papel crepom e se não me falha a memória, não foi para um baile de carnaval, mas sim para uma festa junina. Não me lembro direito do modelo, só me lembro que era vermelho. O papel me deixou toda manchada, porém nada que um bom banho não resolvesse. Tu, Clarice, te preocupavas com a tua fantasia de papel que podia desfazer-se caso uma chuva viesse a cair e eu só me preocupava com o vestido, justamente, por ser ele de papel e que podia rasgar por qualquer motivo e a qualquer momento. Eu não pensava na vergonha que sentiria se tal coisa acontecesse, eu me preocupava era com a fragilidade e a feiúra do vestido. Bem, querida, em teu recordar tinhas apenas oito anos, eu, no meu repensar, era um pouco mais velha e talvez por isso mais vaidosa; sentindo em mim, aflorarem os primeiros anseios de menina-moça, e sem saber o que fazer, não me reconhecia, era como que outra pessoa abrindo caminho à força por dentro de meu ser. Para mim Clarice, os Carnavais, até hoje, são “melancólicos”, quem sabe, seja assim por me lembrarem coisas que não vivi, e talvez tivesse gostado de viver e sobre as manhãs de Carnaval; na azáfama dos preparativos, tenho pra te dizer que um dia de travessura infantil e puro devaneio, um dia de manhã bem cedo, sai desfilando minha fantasia, minha fantasia de “louca varrida”, de sonhadora incorrigível, mas, ainda era muito cedo e todos dormiam, nem o sol havia despertado. Desfilei avenida abaixo, sem carro alegórico ou comissão de frente e para os quatro cantos, gritei minha poesia. Ninguém me jogou confetes. Ninguém me aplaudiu. Ainda era muito cedo e todos dormiam. Ninguém me ouviu. Em plena avenida, despi-me da fantasia, ficando completamente nua. Não era mais uma “louca varrida”, nem uma sonhadora incorrigível, era somente eu mesma menina-flor-mulher, em flagrante desabrochar, cândida, fresca e frágil... Ninguém me viu. Ainda era muito cedo e todos dormiam, nem o sol havia despertado. Mas posso te dizer Clarice, que a minha poesia ficou gravada na memória daquela manhã de carnaval. Das coisas que já me aconteceram, houve sempre o melhor e o pior, mas eu não acredito que o destino seja um jogo de dados irracional, não acredito nem sequer que nossa vida seja um jogo de qualquer espécie, porém, impiedosa, muitas vezes ela é, e certos fatos que nos sucedem são mesmo difíceis de superar ou sequer compreender e sinto que algo morreu em mim antes mesmo d’eu começar a viver, eu já nasci desencantada. Não quero com essa frase parecer trágica, mas é assim que me sinto. Quando alguma alegria tenta se instalar, lembro-me de todas as coisas ruins que me aconteceram e o que acontece aos outros cotidianamente e isso lança sombras escuras sobre o meu contentamento. E a alegria dos outros sempre me apavora, embora seja esta alegria compreensível e desejável, tanto para eles quanto para mim. Deve ser algum boicote, alguma sabotagem que faço a mim mesma, uma, um muro invisível que ergui para me impedir de ver ou sentir a luz do sol. Eu sou Clarice, uma rosa que ama o sol, mas que ao mesmo tempo teme o seu brilho. Ergo-me sobre este muro, esta barreira invisível e desafio a infelicidade que de forma irônica zomba de mim. Mesmo assim tento manter-me firme acima do muro, até um dia ter coragem de ir mais além. O sol amigo me diz que este muro inexistente deve sumir para sempre, pois não há felicidade sem tristeza ou vice versa. Ninguém é sempre alegre ou sempre triste, deve ser um meio-termo, algo assim entre os dois. Eu sou Clarice, hoje, uma rosa-mulher solitária ao pé de um muro invisível que há muito deixou de ser menina e que quando perdida em seus receios, se sente uma palhaça pensativa de lábios vermelhos, querendo então que algo surpreendente aconteça e de que tudo não seja apenas um sonho ou uma delirante fantasia, algo surpreendente, que traga consigo a centelha iluminada da verdade e que de repente me devolva a menina que fui um dia, menina com cheiro de rosa, com perfume e encanto de mulher.
Então Clarice, o assunto agora é Carnaval? Bela lembrança...! Pena que eu não guarde nenhuma em especial dos carnavais passados, nenhuma tão delicada quanto a tua, dessa época da infância. Abro e fecho as gavetas da memória, reviro-as e nada encontro de relevante. Estudava em colégio de freiras e o Carnaval para nós era um tempo de recolhimento e oração. Entediava-me e ficava torcendo em agonia para que logo chegasse “a quarta-feira ingrata”, a quarta-feira de cinzas, quando tudo então chegava ao fim. Na quarta-feira tudo se aquietava tudo se acalmava, até a natureza, tudo se recolhia em descanso, num silêncio respeitoso. Respeito a quê? A morte da “alegria”, que era preciso acabar para que tudo voltasse ao normal. Recordo-me ainda desses dias de festas, e das vezes em que víamos alguma coisa, como os blocos de sujo, passando em plena algazarra por dentro das ruas do bairro, jogando para todos os lados confetes e serpentinas. Achava linda a chuva de confetes e as serpentinas atiradas a esmo, eram como que laços que prendiam o expectador ao folião, unidos na mesma alegria nem tão barata assim. Lança-perfumes, já por esse tempo; usava-se muito pouco devido a proibição, mas os confetes coloridos que enfeitavam as ruas e calçadas, uma vez lançados eram re-reunidos em pequenos montes e lançados com euforia pela criançada, sucedendo o mesmo às serpentinas que ficavam dependuradas em fios ou galhos de árvores, balançando ao sopro do vento, como que pedindo para serem puxadas de onde estavam enroladas novamente e atiradas a uma longa distância até por fim acabar sua curta existência. Aos bailes infantis também nunca fui e fantasias só aquelas que eu vestia em minha imaginação. Ai, Clarice em meu tempo de menina fui sedenta como tu e nessa sede insensata absorvia a energia estranha e poética que saia da vida dos outros, pois, para mim só havia a alegria dos outros (uma alegria, aliás, que eu pouco entendia) e as máscaras não me metiam medo... o que eram máscaras de brinquedo diante das máscaras que realmente recobrem nossos rostos? Aprendi muito cedo a distingui-las. Aprendi muito cedo que as pessoas e seus mistérios, encantam e desencantam, as pessoas e seus mistérios fizeram dar-me conta do meu próprio mistério que de tão escondido era insuspeito em mim. Por muitos anos Clarice, não tive em casa ninguém doente, como tiveste tu em teus dias de infância, mas mesmo assim não pulávamos Carnaval (quero dizer nós, as meninas) entretanto, meus irmãos, os dois maiores, rapazolas, corriam soltos participando de tudo quanto era jeito. Liberdade não lhes faltava nunca; fosse Carnaval ou não, mas eu não lhes tinha inveja. Tinha meu próprio mundo. Usei uma vez um vestido de papel crepom e se não me falha a memória, não foi para um baile de carnaval, mas sim para uma festa junina. Não me lembro direito do modelo, só me lembro que era vermelho. O papel me deixou toda manchada, porém nada que um bom banho não resolvesse. Tu, Clarice, te preocupavas com a tua fantasia de papel que podia desfazer-se caso uma chuva viesse a cair e eu só me preocupava com o vestido, justamente, por ser ele de papel e que podia rasgar por qualquer motivo e a qualquer momento. Eu não pensava na vergonha que sentiria se tal coisa acontecesse, eu me preocupava era com a fragilidade e a feiúra do vestido. Bem, querida, em teu recordar tinhas apenas oito anos, eu, no meu repensar, era um pouco mais velha e talvez por isso mais vaidosa; sentindo em mim, aflorarem os primeiros anseios de menina-moça, e sem saber o que fazer, não me reconhecia, era como que outra pessoa abrindo caminho à força por dentro de meu ser. Para mim Clarice, os Carnavais, até hoje, são “melancólicos”, quem sabe, seja assim por me lembrarem coisas que não vivi, e talvez tivesse gostado de viver e sobre as manhãs de Carnaval; na azáfama dos preparativos, tenho pra te dizer que um dia de travessura infantil e puro devaneio, um dia de manhã bem cedo, sai desfilando minha fantasia, minha fantasia de “louca varrida”, de sonhadora incorrigível, mas, ainda era muito cedo e todos dormiam, nem o sol havia despertado. Desfilei avenida abaixo, sem carro alegórico ou comissão de frente e para os quatro cantos, gritei minha poesia. Ninguém me jogou confetes. Ninguém me aplaudiu. Ainda era muito cedo e todos dormiam. Ninguém me ouviu. Em plena avenida, despi-me da fantasia, ficando completamente nua. Não era mais uma “louca varrida”, nem uma sonhadora incorrigível, era somente eu mesma menina-flor-mulher, em flagrante desabrochar, cândida, fresca e frágil... Ninguém me viu. Ainda era muito cedo e todos dormiam, nem o sol havia despertado. Mas posso te dizer Clarice, que a minha poesia ficou gravada na memória daquela manhã de carnaval. Das coisas que já me aconteceram, houve sempre o melhor e o pior, mas eu não acredito que o destino seja um jogo de dados irracional, não acredito nem sequer que nossa vida seja um jogo de qualquer espécie, porém, impiedosa, muitas vezes ela é, e certos fatos que nos sucedem são mesmo difíceis de superar ou sequer compreender e sinto que algo morreu em mim antes mesmo d’eu começar a viver, eu já nasci desencantada. Não quero com essa frase parecer trágica, mas é assim que me sinto. Quando alguma alegria tenta se instalar, lembro-me de todas as coisas ruins que me aconteceram e o que acontece aos outros cotidianamente e isso lança sombras escuras sobre o meu contentamento. E a alegria dos outros sempre me apavora, embora seja esta alegria compreensível e desejável, tanto para eles quanto para mim. Deve ser algum boicote, alguma sabotagem que faço a mim mesma, uma, um muro invisível que ergui para me impedir de ver ou sentir a luz do sol. Eu sou Clarice, uma rosa que ama o sol, mas que ao mesmo tempo teme o seu brilho. Ergo-me sobre este muro, esta barreira invisível e desafio a infelicidade que de forma irônica zomba de mim. Mesmo assim tento manter-me firme acima do muro, até um dia ter coragem de ir mais além. O sol amigo me diz que este muro inexistente deve sumir para sempre, pois não há felicidade sem tristeza ou vice versa. Ninguém é sempre alegre ou sempre triste, deve ser um meio-termo, algo assim entre os dois. Eu sou Clarice, hoje, uma rosa-mulher solitária ao pé de um muro invisível que há muito deixou de ser menina e que quando perdida em seus receios, se sente uma palhaça pensativa de lábios vermelhos, querendo então que algo surpreendente aconteça e de que tudo não seja apenas um sonho ou uma delirante fantasia, algo surpreendente, que traga consigo a centelha iluminada da verdade e que de repente me devolva a menina que fui um dia, menina com cheiro de rosa, com perfume e encanto de mulher.
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