Quando ao eterno uniu-se, ao despertar de um sono intranqüilo,
restou-lhe somente a vaga sensação
de que um dia, como homem, lançado ao abismo
criou asas e voando a alturas nunca d’antes imaginadas
viu a face de Deus e dos anjos
<3
Dante e Vigílio nos portões do Inferno
Gravura para A Divina Comédia (Dante Alighieri)
Por: William Blake
***
[2]
ARGUMENTO
As Núpcias do Céu e do Inferno, William Blake, Tradução: Oswaldino Marques; Editora Francisco Alves
Rintrah ruge & brande seus fogos no ar carregado;
Nuvens famintas aluem-se sobre o abismo.
Outrora cheio de cordura, numa trilha arriscada,
O justo não se desviou do seu curso 5
Ao longo do vale da morte.
Onde crescem espinhos são plantadas as rosas,
E na charneca maninha
Cantam as abelhas inventoras do mel.
Depois, a vereda perigosa foi semeada
E fluiu um rio, uma fonte, 10
Em cada penhasco e sepultura;
E sobre os ossos alvacentos
Vingou a argila vermelha;
Até que o iníquo abandonou as vias da bonança,
Para palmilhar sendas inseguras 15
E tanger o justo a áridas plagas.
Agora a furtiva serpente caminha
Em suave humildade,
E o justo exaspera-se nos desertos
Onde vagueiam leões. 20
Rintrah ruge & brande seus fogos no ar carregado;
Nuvens famintas aluem-se sobre o abismo. 22
[3] Pois que um novo céu há começado, e faz agora trinta e três anos do seu advento, o inferno Perpétuo revive. E, olhai! Swedenborg é o Anjo sentado na tumba; seus escritos são a roupa branca bem dobrada. Agora é a dominação do Edon & o regresso de Adão ao Paraíso: vede Isaías, caps. XXXIV & XXXV.
Sem Contrários não há qualquer progresso. A Atração e a Repulsão, a Razão e a Energia, o Amor e o Ódio são necessários à existência Humana.
Destes contrários deriva o que os religiosos chamam de Bem & Mal. O Bem, segundo eles, é o ente passivo que obedece a Razão. O Mal é o ativo que brota da Energia.
Dizem que o lar de um homem é onde está seu coração. Mas onde está meu coração? Já não sei... Porém, de onde estou posso ver o céu... melancólico, tristonho... Nenhum vestígio de sol, nenhuma prece a se estender sobre o veludo azul celeste, agora acinzentado, em que passam nuvens arrastadas, carregadas d’água...Tudo me parece velado, distante, estranho... quase um sonho e sinto a tristeza a pairar no espaço feito grande pássaro agoniado de asas largas, abertas, medonhas, infinitas... tão sombrias... a acolher ao seio os contos desfeitos e as agruras comprimidas de mais um dia. "Dois pesos, duas medidas"... lida cotidiana... leviana. Impressiona-me o silencio! Não mais ouço a tua voz... E longe vai a ânsia de te encontrar, sobrevoar o porto, cruzar o mar e descansar no cimo do monte bem perto de teu olhar. Deixar na curva do rio o cansaço, também o rosário e a oração que desfiava em horas de aflição. Absorto em meu pensar, procuro ar... um relâmpago corta devagar a amplidão do céu, entorpece-me a escuridão... sinto olhos a me observarem no escuro, tenho estranhas sensações, fantasmagóricas visões... Porém, imperturbável, deito minha cabeça no travesseiro e durmo o sono dos justos. Meus pecados vão ficando pelo caminho minhas faltas, aceito-as, como prerrogativa de redenção.