Dizem que o lar de um homem é onde está seu coração. Mas onde está meu coração? Já não sei... Porém, de onde estou posso ver o céu... melancólico, tristonho... Nenhum vestígio de sol, nenhuma prece a se estender sobre o veludo azul celeste, agora acinzentado, em que passam nuvens arrastadas, carregadas d’água...Tudo me parece velado, distante, estranho... quase um sonho e sinto a tristeza a pairar no espaço feito grande pássaro agoniado de asas largas, abertas, medonhas, infinitas... tão sombrias... a acolher ao seio os contos desfeitos e as agruras comprimidas de mais um dia. "Dois pesos, duas medidas"... lida cotidiana... leviana. Impressiona-me o silencio! Não mais ouço a tua voz... E longe vai a ânsia de te encontrar, sobrevoar o porto, cruzar o mar e descansar no cimo do monte bem perto de teu olhar. Deixar na curva do rio o cansaço, também o rosário e a oração que desfiava em horas de aflição. Absorto em meu pensar, procuro ar... um relâmpago corta devagar a amplidão do céu, entorpece-me a escuridão... sinto olhos a me observarem no escuro, tenho estranhas sensações, fantasmagóricas visões... Porém, imperturbável, deito minha cabeça no travesseiro e durmo o sono dos justos. Meus pecados vão ficando pelo caminho minhas faltas, aceito-as, como prerrogativa de redenção.
Foi depois do carnaval... Tantos sonhos, tantos planos... mas, apenas para depois do carnaval; depois do carnaval tudo seria diferente. Pedro iria mudar de vida. Tinha para isso um bom motivo... dinheiro guardado no banco, poderia viver bem em qualquer lugar... recomeçar e se possível, com ela ao lado, a sua “branquinha”. Por ora, nada com que se preocupar... logo o baile vai começar e seria sua despedida... despedida do Pedro folgado, mundano, despedida de sua rotina de malandragem, despedida do desamor...
Quem não gostou nada da história, foi a mulata Valmira... que vivia com fogo nos olhos e no corpo carnudo que ele, Pedro., já não queria mais desfrutar. Mulata Valmira, agora era só consumição, possuída apenas pelo ódio... ódio de tudo: dos comentários, dos risinhos debochados, do pouco caso dele, de Pedro. “Se ele pensava que ia ser fácil sair assim”... ah... não perdia por esperar...
Valmira. era paciente e determinada. Não abriria mão de Pedro. seu único e verdadeiro amor... e não seria uma “branquela, azeda e magricela” que iria roubá-lo, levá-lo dali... pra longe do seu colo quente e dos seus afagos. Não... isso não seria tão fácil assim...
Pedro, voltou pra casa de manhã e, cambaleando, foi direto para a cama. Sem despir a fantasia, e ainda coberto de purpurina e confete, acendeu um cigarro e ficou devaneando... devaneando, fechou os olhos, devaneando deixou o cigarro aceso cair... Em seu devaneio, viu V. se aproximar, com fogo nos olhos... num instante, cresceram as chamas no seu olhar e pularam na cama e as labaredas não demoraram a tomar conta do quarto e do corpo de Pedro. Subitamente, a casa inteira, ardia, num fogo crescente e destruidor.
Pedro, em seus últimos momentos, não soube distinguir o sonho da realidade... achou que sonhava e enquanto era devorado pelas chamas, pensava em sua branquinha e em sua nova vida e V. iria entender...
No clamor que se seguiu do lado de fora, apenas Valmira. permanecia insensível, com o filho nos braços. Sem lágrimas, viu a casa de sua família desaparecer para sempre, levando com ela o seu grande e único amor... “que descuidado.... imagina, dormir segurando um cigarro... aceso, ainda por cima... Oxalá, meu pai... Pedro pensou o quê?; pensou que seria fácil assim? iria me deixar assim, sem mais?... Tudo o que Deus faz é bem-feito... muito bem-feito... não existe ditado mais justo”.
Pedro realmente mudou de vida, mas não de acordo com suas expectativas. E o dinheiro guardado no banco serviu apenas para lhe financiar as despesas... as despesas que tiveram de fazer para o seu enterro.
Ironicamente, Pedro, morreu como viveu; vestido de fantasia, coberto de confete e purpurina, perdido entre os limites da realidade e do sonho... mas, o fogo, vermelho, violento e brilhante, não deixou que ninguém o percebesse.