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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA-O EXERCÍCIO DA MALDADE





O EXERCÍCIO DA MALDADE

para Clarice

O exercício da maldade pela pura maldade eu não o senti. Questionamentos sobre maldade / bondade requerem reflexões mais profundas e complexas (será?!) e, que sei eu? Mas das “pequenas maldades”, destas sim posso falar, as conheci, as senti literalmente na pele, desde o colégio.
Naquela época uma menina adorava nos dar beliscões; puxar-nos cabelos e outras coisinhas mais. Era um terror encontrá-la todo santo dia na escola, em sala de aula, pois o “anjinho de candura” em questão era minha colega de classe. Bem, seu pai não era dono de livraria e sua mãe não parecia com mãe nenhuma. Lembrava mais uma boneca pintada demais, uma caricatura, uma bruxa de pano. A menina também era assim; puro exagero. Gorduchinha, moreninha, cabelos curtíssimos e um busto que já prometia; ela, realmente era precoce, precoce em tudo menos no bom uso da inteligência; talvez não pudesse... Apesar das reinações; digo essas pequenas torturas que gostava de nos infligir, eu não conseguia sentir raiva, sentia pavor e pena por ela ser desse jeito. Minha intuição dizia que tinha algo muito errado com ela, com a mãe dela, não era “normal”, digamos assim, ser como elas eram e agir do modo que agiam.
Minha intuição se confirmou ao saber, anos depois, que ela ficara completamente louca, em dado momento de sua vida, sua mente oscilou, vagueou e se perdeu para todo o sempre. As suas “maldadezinhas” infantis não passavam das primeiras manifestações de um cérebro doente.
Em minha adolescência, conheci outro garoto com o mesmo gosto pelo sadismo, precisavas ver com que prazer nos mordia e nos tascava beliscões, nós, garotas, fugíamos dele como o diabo da cruz.
Em relação a livros e o exercício da maldade posso te contar a minha experiência. Ainda na adolescência, tive uma vizinha que possuía um tesouro inestimável (e que ela não dava o menor valor) que eu muito ambicionava; a obra completa de Machado de Assis, de capa dura e verde, a cor da esperança, esperança que tinha eu de que um dia ela viesse parar mim. A coleção, já principiando um estado de deterioração causado por mofos; ácaros, traças e baratas, devido ao estado de abandono, metida e esquecida que estava por dentro de caixas de papelões, sempre encostadas, esquecidas em um canto. Minha vizinha nem sequer se dava ao trabalho de trocá-las.
Além de Machado de Assis, ela ainda possuía, para dor em meu coração, pois estes também viviam por dentro de caixas de papelões alimentando todo um mundo de pequenos seres, visíveis e invisíveis, uma coleção de contos de autores russos, que iam do antigo ao contemporâneo.
Um dia, Clarice, meu sonho se realizou. Imagina você que num ataque de limpeza, ela resolveu desfazer-se dos livros, de todos eles, mas para sua “insatisfação”, ao abrir as caixas; muitos já não prestavam tão carcomidos e envelhecidos pela falta de uso, e poucos deles foram de proveito. Baratas e aranhas saltavam aos montes, isso sem falar dos cupins... Meu coração bateu descompassado. E se Machado estivesse no mesmo estado lamentável? Que desperdício.! Que triste fim para um tesouro de inefável valor...
Ela dirigiu-se a caixa onde estavam os livros de Machado e a abriu com cuidado... Não queria outra vez ser surpreendida pela rapidez de um salto de aranha ou o nojo causado pelo rápido e agonizante passeio nos braços que costuma dar uma barata, e eu, por minha vez, ficaria livre de seus pulos e gritos.
Para nosso alivio, Machado resistira com bravura, mesmo amarelado e combalido da batalha contra o tempo em que mofos; traças; ácaros; baratas e seus derivados reinam absolutos.
Minha vizinha foi bem generosa, mas o mesmo já não posso dizê-lo de sua mãe... Pois é minha alegria logo se converteu em decepção. Minha vizinha, sabendo de meu interesse por leitura, especialmente no que dizia respeito àqueles livros, fez-me uma proposta irrecusável. Eu levaria a coleção comigo e poderia pagá-la em lentas prestações. Aceitei; óbvio, Clarice, sem nem pestanejar, farias o mesmo, e, muito contente (contente é pouco para se dizer) trouxe os livros para casa, o que não me custou nada, já que a mesma morava defronte a minha... e que alegria sentia ao saber que a obra completa de Machado de Assis, era, agora, minha, só minha, sempre ali, tão verdinha, a qualquer hora, a minha espera. Poderia lê-la sem pressa, acariciá-la, namorá-la, degustar cada palavra, entrar em cada história, em cada personagem. Amando com eles, odiando com eles, vivendo com eles. Pegava um; pegava outro, abria, lia uma frase, relia... e meu lugar predileto, era a cama, em que deitada de bruços, punha-me a sonhar.
Ah, Clarice, posso dizer que, como tu, eu vivia no ar, e o pudor e a graça, e até o recato, eram constantes em mim, porém eu não tinha um; mas sim vários amantes. Era de lamber os beiços de tanto prazer.
Todavia, minha alegria durou pouco, na verdade, só o tempo de ler Os contos; e, os romances, Helena e Dom Casmurro. E casmurra fiquei eu depois do que aconteceu.
A mãe de minha vizinha, ao saber da transação, não gostou, e num ato de egoísmo, misturado a despeito, inveja e ciúme, ela que nunca havia lido um livro, nem mesmo sabia quem havia sido Machado de Assis, foi, em pessoa a minha casa pegar os livros de volta; e fez tamanho estardalhaço que me vi obrigada a devolver a coleção. Que pesar...! Ver o meu sonho realizado, de repente, sair porta afora, levado por mãos arredias e alma ignorante. A esperança, desde então, para mim, se me afigurou como um sentimento intimidador, enganador. Quando sinto esperança, sinto-me enganada em minhas expectativas, burlada em minha intuição. O “mal” que a mãe de minha vizinha tinha me infligido, fruto apenas da ignorância, não deixa de ser uma das piores formas de maldade existente.
Se eu sei, enfim, o que aconteceu a obra de Machado? Disseram-me que a mãe de minha vizinha, a deu a uma sobrinha que acabara de se formar em magistério, mas, que nem por isso o velho e bom Machado; teve um tratamento digno. Continuava sublocado, metido por dentro de caixas de papelões ou largado, indiferente, em algum canto.
Recuso-me a guardar ressentimentos, procuro exorcizá-los, mandá-los para longe, para que não cresçam e apodreçam o que há de bom dentro de mim, mas esta é uma das recordações ruins, uma das banais, senão a mais, que custo a esquecer... Esquecer não... Esquecer o que tanto marcou a gente nunca esquece, mas não deixei que virasse mágoa, rancor, dor doída que amarga a vida.
Minhas recordações doloridas, hoje, são pura melancolia e estão adormecidas no fundo de uma caixa de vidro que, certamente, mais cedo ou mais tarde, se quebrará.
Ainda não possuo as obras completas de Machado de Assis, mas, um dia, quem sabe... Hiii... lá vou eu... Xô, esperança... fora, vai embora, pra longe daqui
!

terça-feira, 30 de setembro de 2008

INSONDÁVEL FIM



Um silêncio rubro cai sobre a tarde descorada
Sobe o tédio junto com os passos na escada
dos estranhos que passam

As vozes abafadas misturam-se as conversas animadas,
das gentes em frente das casas, sentadas em cadeiras nas calçadas

Romaria dos aflitos, dos cansados, dos perdidos, dos malditos
Seres... humanos...natureza sobrecarregada, alada mistura
Metade demônios metade anjos, incompreensíveis

Carregam eles consigo a marca obscura do desconhecido
A solidão de não saber o que, realmente, poderiam ser e há na dor dessa incômoda solidão o doce alívio dos esquecidos

terça-feira, 23 de setembro de 2008

TUDO ESTÁ BEM QUANDO ACABA BEM



Hans Christian Andersen
(02 de Abril de 1805/04 de Agosto de 1875)



Um conto de Hans Christian Andersen
Recontado por Virgínia Allan
Coleção UM TESOURO DE CONTOS DE FADAS; pág. 85; Edição publicada nos Estados Unidos em 1994.



Era uma vez em certo vilarejo antigo, esquecido até mesmo pelo tempo, preguiça que tinha de por lá passar, dois casebres muito velhos, em cujos telhados de sapé, cobertos por grama e musgo, duas cegonhas vieram construir seus ninhos.

Quando o vento soprava, dependendo da direção de onde vinha; as paredes dessas casas, de tão arruinadas, se inclinavam ora para a direita, ora para a esquerda. Para completarmos a descrição, estes casebres possuíam duas ou três (?) janelas baixas, mas, que, com exceção apenas de uma, estavam bastante emperradas. O forno, enterrado na parede, lembrava uma barriga grande, redonda e gorda. Do lado de fora, uma madressilva trepava sobre a cerca; espalhando seus galhos, protegendo com sua sombra uma linda e tranqüila lagoa de patos. Um cão de guarda latia sem cessar, se, por um acaso, alguém se lembrasse de passar por ali.

Pois bem, era num destes casebres miseráveis que vivia um casal idoso; um lavrador e sua mulher. Eles não possuíam nada neste mundo, melhor dizendo, quase nada, há não ser um cavalo, que costumava pastar perto dos fossos ao longo da estrada, e um magnífico jardim.

O velho lavrador sempre montava o animal quando ia à cidade e os vizinhos, de vez em sempre, o pediam emprestado e, em nome da velha amizade, o lavrador o emprestava, indo junto com o empréstimo um raminho de lindas flores, oferta calorosa e perfumada, delicado convite, porém, nunca percebido, para ensinar-lhes a difícil arte de se construir jardim. Mas, apesar da falta de percepção, os vizinhos em troca da gentileza, ajudavam o bondoso homem, nos mais diversos tipos de tarefas.

Entretanto, apesar deste excelente relacionamento com a vizinhança, o velho lavrador pensou que seria melhor se livrar do cavalo. Decidiu então, vendê-lo ou trocá-lo por qualquer outra coisa que fosse mais útil para ele e sua velha. “Alguma coisa que você valorize mais do que qualquer pessoa” recomendou a mulher ao seu esposo. “Hoje na cidade é dia de feira. Vá lá e leve o cavalo. Você, meu velho, há de ter um bom lucro vendendo-o ou trocando. Vá, vá, apronte-se logo... O que você fizer, para mim, estará bem.”

Ela foi buscar um lindo cachecol que colocou ao redor do pescoço de seu esposo dando-lhe em seguida um nó duplo pra lá de elegante. Ela lhe tomou o chapéu, e, com muito jeito, alisou-o com a palma da mão. Depois disto, deu-lhe um baita beijo e mandou-o seguir. Ele, obediente, montou no cavalo e foi à cidade, negociar.

“Sim”, disse consigo a velha senhora, enquanto lhe acenava um adeus, “o meu velho sabe o que faz. Ele é o melhor negociante que conheço.”

Naquele dia, o sol estava muito quente, e no céu não passeava uma nuvem. O vento levantava o pó da estrada pela qual passava - em carroça, a cavalo ou a pé - todo tipo de gente, apressada, ansiosa por chegar o quanto antes à cidade, pois o calor era intenso e pela estrada empoeirada não havia uma só estalagem.

No meio desse povo estava um homem com uma vaca, mas não uma vaca qualquer. Era uma vaca tão bonita como uma vaca pode ser.

O lavrador olhou para o animal e pensou: “Esta vaquinha deve dar um leite delicioso. Huum! Vejamos... a vaca pelo cavalo, certamente, seria uma troca maravilhosa!”

E foi assim que, parando ao lado do homem, o velho chamou-lhe a atenção: “Ei, senhor. Quero lhe fazer uma proposta. Ouça-me, por favor. Todos sabem que um cavalo custa muito mais do que uma vaca, mas, para mim isso não faz diferença. A vaca me será mais lucrativa que o cavalo. Portanto, o senhor gostaria de trocar a sua vaca pelo meu cavalo?”

“Ó, eu ficaria encantado”, respondeu o homem, mal acreditando em sua sorte. Então, para satisfação de ambos eles efetuaram a troca.

Bem, tendo isto ocorrido, o velho lavrador, bastante contente por ter feito um bom negócio, poderia ter retornado para casa, mas, como ele já havia resolvido fazer uma visita à feira, continuou em seu caminho para a cidade.

 Entre tanta gente apressada, ansiosa, o velho lavrador também se apressou embora a vaquinha, de vez em quando, o fizesse retroceder, fazendo desta maneira, que o velho demorasse por uns instantes na observação de seus próprios passos. Mesmo assim, não demorou muito e encontrou-se com um outro homem que levava uma ovelha, mas não uma ovelha qualquer, era uma ovelha de uma espécie rara, com pêlo lanoso espesso.

O velho pensou: “Ora, ora eis aí um belo animal para se ter. Uma ovelha encontrará todo o capim que vai precisar para comer ao lado de nossa cerca. No inverno podemos deixá-la dentro de casa, será uma excelente distração para minha amada. A ovelha é melhor para nós do que a vaca, certamente.”

Ele, então, se aproximou do dono da ovelha e disse: “Olá, amigo, você não gostaria de trocar...” Antes mesmo que pudesse completar a proposta, o velho viu-se com a cordinha da ovelha nas mãos. O homem, satisfeitíssimo com a troca, pegou a vaquinha e temendo que o velho lavrador se arrependesse do negócio, sumiu num abrir e piscar de olhos.

O velho lavrador, desta vez em companhia da ovelha, continuou sua jornada rumo à cidade. A certa altura, ele viu um homem carregando debaixo do braço, um ganso vivo; gordo e grande, mas não era um ganso qualquer, era um ganso magnífico, um ganso que não se encontrava em qualquer lugar. O velho lavrador estava muito admirado.

“Ahá...eis aí uma bela criatura” pensou consigo o lavrador. “Esta é uma ave espetacular. Tanta gordura! E que penas maravilhosas! Em nossa casa, minha esposa acharia um modo de deixá-lo ainda mais gordo. Ele poderia comer todas as sobras e então, de que tamanho ele não ficaria...? Lembro-me de que ela constantemente me dizia: ‘Ah! Como seria bom se tivéssemos um ganso. Ele ficaria muito bem junto aos nossos patos’. “Sim”, continuou a pensar o velho lavrador; “ele ficaria muito bem junto aos nossos patos. Talvez, esta seja a nossa oportunidade de ter um ganso; mas não um ganso qualquer; um ganso que, certamente, valerá por dois!”

E o velho lavrador, disposto a não mais perder tempo, dirigiu-se ao dono do ganso:

Olá, meu amigo. Gostaria de fazer uma troca comigo? Dê-me o seu ganso e leve a minha ovelha. Eu não faço questão de mais nada!”

A este homem também não foi preciso perguntar duas vezes e o velho lavrador, sem dificuldades; logo se tornou um feliz dono de ganso.

 A essa altura, ele já estava às portas da cidade. A multidão aumentou; homens e animais, devido à pressa, atropelavam-se ao longo da estrada. A dificuldade em caminhar era tanta que até dentro das valas, perto das cercas dos campos, algumas pessoas foram parar, entretanto, no portão de entrada da feira a confusão era ainda maior, um verdadeiro “Deus nos acuda”. Lá, todo mundo se empurrava para entrar.

Em meio a balburdia, o coletor de impostos da cidade levantou no ar uma galinha, que ele, por receio da multidão, prendera num barbante para que assim ela não se assustasse e fugisse. Ela aninhou-se no portão de entrada e bateu as asas cortadas; piscou o olho, de maneira graciosa e em vez de fazer “co-có-ri-có” ela fez “claque, claque”... Será que a galinha estava a pensar em alguma coisa? Quem saberia? Porém, o velho lavrador que atentamente observara a reação do coletor de impostos, pois estava de olho na galinha, achou aquilo muito engraçado, engraçado mesmo e danou-se a rir, pensando: “Essa bichinha é ainda mais bonita que a galinha choca do pastor.

 Ela não é uma galinha qualquer e é tão engraçada... Quem continuaria indiferente diante dela? Certamente lá no vilarejo todos cairiam na gargalhada! Deus do céu, como eu gostaria de tê-la. Com certeza, a galinha é um animal mais fácil de se criar... Ela não requer tantos cuidados, pois come grãos e migalhas espalhadas pelo chão.

 Penso que se eu conseguisse trocar o meu gordo ganso por essa belezinha, eu faria um excelente negócio. Ora, se faria...”

O lavrador achegou-se ao coletor de impostos e pondo o ganso à vista, lhe perguntou: “O senhor não trocaria sua galinha por este ganso?”

“Trocar? Mas, é claro. Isso seria perfeito.” Respondeu o coletor de impostos, que então levou o ganso, deixando a galinha nas mãos do lavrador.

O velho negociara bastante durante esta jornada até a cidade e agora estava cansado e muito incomodado com o calor. Ele necessitava urgentemente de alguma coisa para comer e beber. Olhou ao redor e logo viu uma estalagem para onde se dirigiu com passos ligeiros. Neste justo momento, saía um rapaz da dita estalagem carregando uma bolsa cheia até a boca. O velho, curioso, imediatamente, lhe perguntou: “Ei, rapazinho, o que estás levando aí?”

“Ó, isto aqui, senhor?” Respondeu o rapaz. ”Não é nada demais... É apenas um saco de maçãs murchas que vou jogar aos porcos.”

“Upf”! Resmungou o velho, “o que é que estás dizendo? Maçãs murchas para jogar aos porcos? Que extravagância, que desperdício! Minha amada esposa faz coisas maravilhosas com maçãs murchas. Ela ficaria tão feliz com todas essas maçãs... Desde o ano passado que a nossa velha macieira, que fica junto ao estábulo, não dá sequer um único fruto. Costumamos as apanhar ainda verdes para guardá-las no armário da cozinha até ficarem maduras. Diz minha esposa que isto é um sinal de quem se sente confortável, imagine então o que ela não diria se lhe conseguisse um saco cheio de maçãs? Eu adoraria fazer-lhe esta surpresa.”

“Tudo bem, mas o que o senhor me daria em troca do saco?” Perguntou o rapaz.

“O que eu daria? A galinha, é claro! Não achas que está bom?”

O rapaz aceitou a troca prontamente. Em seguida, o velho lavrador entrou na estalagem com o saco, que pôs, com muito cuidado, perto do fogão, que, aliás, estava muito quente, 'fato, porém que o velho lenhador nem percebeu. Pediu um trago e o tomou avidamente.

Havia gente demais na estalagem; negociantes de cavalos, criadores de gado e muitos viajantes. Entre estes últimos, encontravam-se dois franceses com bolsos abarrotados de moedas. Os dois sujeitos eram tão ricos, que, só para se livrarem um pouco mais do peso de tanto dinheiro, adoravam fazer todo tipo de aposta.

Repentinamente, do fogão partiu um estranho ruído: ssss-ssss!.. “O que foi isso?” Perguntou um dos franceses. Pois não é que eram as maçãs que estavam começando a cozinhar?

“Oh, minhas maçãs...!” Disse o velho lavrador, e ele então contou aos franceses, tintin por tintin, toda a sua aventura.

“Sendo assim, meu bom homem”, disseram-lhe os franceses, “sua esposa ficará furiosa. Espere só até você chegar em casa!”

“Furiosa nada”, lhes respondeu por sua vez o velho lavrador, “minha velha vai é me abraçar e dirá toda sorridente: ‘O que o meu velho faz está sempre certo, seja lá o que for ou como for. Tudo está bem quando acaba bem.”

Os franceses, que viram nisso uma boa oportunidade para apostar, não perderam tempo e lhe disseram assim: “Se o senhor está tão confiante de que tudo vai acontecer desta maneira, que tal fazermos uma aposta? Nós, meu amigo e eu, apostamos cem quilos de ouro.”

“Bem, não precisa tanto. Uma sacola será o bastante”, disse-lhes o lavrador, “porém, para apostar, tenho apenas este saco de maçãs. Eu diria que é uma boa troca. Se aceitam considerem a aposta fechada.”

“Claro que aceitamos. Um saco de maçãs é o suficiente.”

Após esta conversa, onde mais uma vez, para alegria dos franceses, uma aposta foi firmada, os três homens pediram emprestada a carroça do estalajadeiro, subiram nela e rumaram confiantes de volta ao sitiozinho em que começara toda essa história.

Mal entrou na cabana, o velho lavrador abraçou sua velha lhe dizendo carinhosamente: “Boa noite, minha amada.”

“Boa noite, meu amado”, respondeu a velha, retribuindo-lhe com o mesmo entusiasmo a sincera saudação.

O lavrador então, disse à sua esposa: “Sabe querida, eu troquei o cavalo.”

“Ah, que bom, querido!” Disse-lhe a esposa, beijando-lhe o rosto, sem notar o saco de maçãs ou a presença dos dois estranhos. “Você, meu velho, sabe mesmo negociar.”

O lavrador tornou a falar. “Eu troquei o cavalo Por uma vaca.”

“Graças a Deus!” Disse a esposa, “de hoje em diante, teremos leite, manteiga e queijo! Que troca maravilhosa.”

“Sim, teríamos leite manteiga e queijo”, retrucou o lavrador, “mas acontece que eu troquei a vaca por uma ovelha.”

“Você é mesmo muito esperto”. Disse a esposa, lhe piscando um olho, “uma ovelha no lugar de uma vaca é ainda melhor. Capim é o que não falta por aqui. Ademais, uma ovelha também pode nos dar leite e eu adoro queijo de ovelha. Teremos lã, com a qual poderei tricotar meias e casacos lindos e quentes. Uma vaca não poderia nos dar tudo isso. Que maroto! Você pensa mesmo em tudo.”

“Espere, querida, ainda não acabou. Eu troquei a ovelha por um ganso.”

“Ótimo, querido. Teremos um gordo ganso assado para Natal. Você não existe. Sempre tão gentil; nunca se esquece de mim. Você sabia que um ganso muito iria me agradar. Daqui até o dia de Natal, ele ficará mais gordo e bonito.”

“Sinto muito, minha velha”, disse o lavrador, “porém já não tenho mais o ganso; eu o troquei por uma galinha.”

“Não há problema nenhum, meu amado esposo”, respondeu-lhe a velha, “uma galinha tem lá a sua utilidade. Ela põe ovos, choca e depois nascem os pintinhos, que logo vão crescer e então, teremos aves à vontade para comermos. O meu sonho é possuir uma verdadeira granja.”

“Bem minha esposa, eu finalmente, troquei a galinha por um saco de maçãs murchas. Você havia me dito para que trocasse ou vendesse o cavalo por algo que eu valorizasse mais do qualquer pessoa, e não existe nada; nem ninguém que tenha mais valor para mim do que o conhecimento, já que aquele que o obtêm, por pouco que seja feliz será, mas como conhecimento não é tão simples de se encontrar, usei o que aprendi a usar e acho que me sai melhor do que todos eles. E quanto a você minha cara, saiba o quanto lhe amo, pois foi graças ao seu conselho que me acompanhou durante todo o tempo, que não ‘troquei’ os pés pelas mãos.”

“Verdade, meu marido?” Exclamou a esposa, demonstrando um tão inesperado espanto que quase perdeu a fala. “Você merece um beijo, meu amado marido. Sabe o que aconteceu esta manhã, assim que você saiu? Eu pus-me a pensar no que poderia fazer para o nosso jantar. Ovos com manteiga e cebolas foi o que me ocorreu. Eu tinha os ovos e a manteiga, mas não havia cebola. Dirigi-me, então, ao diretor da escola, que possui uma bela plantação de cebolas e falei com sua esposa. Você sabe como ela é. Debaixo daquela aparência meiga se esconde uma bruxa mesquinha e quando há má vontade, seca-se farinha no varal. Mas, mesmo assim, pedi-lhe emprestado um punhado de cebolas.”

“Ao ouvir meu pedido, eis o que a bruxa me disse: ‘Emprestar? Não temos nada para emprestar. Nossa horta acabou, nem as cebolas escaparam. Sinto muito, vizinha, não temos mesmo nem um punhado de maçãs murchas.’

 A megera bateu-me a porta na cara e eu voltei para casa trazendo nada nas mãos. Mas você sabe meu velho, porque afinal ela age assim. A bruxa velha morre de inveja de nosso jardim. Ela trocaria ‘amavelmente’ toda a sua plantação de cebolas para conseguir flores mais bonitas e frescas que as nossas. Mal ela sabe que fazer jardim é mais que uma arte; sem nossa ajuda, que ela faz questão de recusar, jamais conseguirá transformar sua plantação de cebolas em um maravilhoso jardim Amanhã, irei lá novamente e vou levar-lhe algumas dessas maçãs murchas, algumas não; vou levar-lhe o saco inteiro. Coitada! Ela não tem nenhuma. Vai ficar tão sem graça! Já estou até vendo a sua cara!”

Cheia de contentamento, a esposa tornou a abraçar o marido e lhe deu fortes e estalados beijos. Pareciam duas crianças.

Após observarem tudo o que se passou, por fim, lhe disseram os franceses: “Bom, meu velho lavrador, as perdas de valor, não mudaram o humor de sua esposa nem por um instante sequer.”

“Não perdi nada de valor. Os homens acreditam que tudo funciona por meio da troca e eu só lhes ministrei uma dose do seu próprio remédio. Bem se vê que não sabem de nada.”

“Seja lá como for, ganhaste a aposta. Tome aqui, sua bolsa de ouro.”

“Bastam-nos apenas algumas moedas”. Disse o velho, para a surpresa dos franceses.

“Algumas moedas? É muito pouco para o resto da vida, pense bem meu velho.”

“Não há o que pensar. Talvez nem vivamos tempo suficiente para gastar todo esse tesouro. Vamos, apenas umas moedas e tudo ficará bem.”

Assim, a felicidade do casal foi imensa. Depois de todo aquele troca-troca tão comum entre os homens, o velho lavrador, mesmo com aquela pequena quantidade de moedas, se tornou muito mais rico do que se tivesse vendido o cavalo dez vezes, por trinta vezes mais o seu valor. E isto nos leva a pensar que realmente o velho estava muito certo ao dizer que TUDO ESTÁ BEM QUANDO ACABA BEM!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O GOLFINHO


Um golfinho em mar aberto
Que inveja me dá o teu alegre navegar
Sabes ao certo aonde irás
Pois segues, por instinto, a corrente do destino
Que em segurança te conduzirá
Aonde deves ficar
Encantadora criatura das águas salgadas, solitárias
Eu que nem sei nadar, perdido fico
afogado em soluços e mágoas
No cais da saudade que é o meu lugar...

domingo, 21 de setembro de 2008

NUVEMOVENTE



Quero...
O que eu quero?
Queria um pouco de tudo
Ou quem sabe
apenas um copo de suco
Sei lá...
tem hora que não dá.
Nem sei o que penso
Estou vazia de mim
Fujo talvez...
de possíveis tormentos...
mas, sem pressa...
com a alma aberta...
correndo solitária
na esteira do mundo
Dou a volta e torno
ao ponto de começo
Recomeço
Tropeço
Caio
Levanto-me...
sigo adiante...
nuvemovente...
silente...
Passageira...
Eu...
Viajante das estrelas...

sábado, 20 de setembro de 2008

TEIA DE ARANHA OU VÉU DE ROSA?!



A aranha pequenina
na roseira tece uma teia!
Fina renda ela tece
com maravilhosos fios de seda
O delicado rendado
transformar-se-á em um véu prateado
que esconderá a bela rosa vermelha
da invejosa lua cheia
Véu prateado que se desfará no calor da manhã
quando a rosa encontrar – se nos braços do sol!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

ARTE, ARTE, Ó ARTE...

imagem - Jackson Pollock (28/01/1912-11/08/1956)

De tudo se faz canção de tudo se faz “arte”?!.
Se as cordas arranham um violão ou
Se uma agulha cai ao chão
Se o vento sopra
Se a lua brilha
Se a tarde morre
Se a noite cai
Poema rima coração
Bela canção!
Pintura
Xilogravura
Fotografia
Grafite
Colagem
Perfeição?!
Cascas de laranjas
cacos de vidros
corpos divididos
tênis velhos
Confusão?!
Instalação?!
Deterioração?!
“Arte” ou judiação?!
Eis aí a questão!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A CRIAÇÃO, MITO IORUBA



No principio era o Caos sem forma. Não havia terra; não havia mar, havia apenas uma fria e estranha solidão a pairar, desoladora, sobre um pântano.
Lá, no alto do céu mais alto, acima do pântano, vivia Olorum, o Ser Supremo. Ao redor de Olorum, outros deuses, sempre prontos a servi-lo e a atender seu chamado, inclusive Oxalá, o Grande Deus.
Um dia, chamou Olorum a Oxalá à sua presença e mandou-lhe que criasse um mundo com terra firme e para isso, para que Oxalá fosse bem sucedido em sua missão, deu-lhe uma concha de caramujo com uma porção de terra mágica, um pombo e uma galinha de cinco garras.
Oxalá desceu do céu até o Caos e pôs-se a organizá-lo. Primeiro, procurou, e achou, naquele mar pantanoso um ponto seco onde jogou a terra mágica, em seguida, sobre ela, soltou o pombo e a galinha que logo começaram a ciscá-la e ciscaram tanto que a terra e o mar foram de uma vez separados.
Assim que Oxalá voltou à presença de Olorum, a fim de prestar contas de sua obra, um camaleão foi enviado para avaliá-la e o seu relato foi bastante alentador, enchendo Olorum de satisfação, o que fez que mandasse Oxalá de volta e terminasse o que havia tão bem começado.
O ponto seco localizado por Oxalá ficou conhecido como Ifé
[1], mais tarde Ifê-Ilê [2] até hoje tida como cidade sagrada.
Oxalá levou quatro dias para fazer tudo e no quinto dia, descansou. Mas, outra vez Olorum chamou-o a sua presença e ordenou a Oxalá que baixasse a terra e criasse toda espécie de planta. De pronto surgiu a primeira dendezeira. Isto feito, Olorum ordenou a chuva que caísse e a chuva desceu, cantando, dançando, e molhou as sementes que então cresceram e formaram uma enorme floresta, cobrindo a terra.
Oxalá pôs-se a criar, a partir da terra, as primeiras pessoas, mas, precisou levá-las para o céu; pois somente Olorum, o Ser Supremo, poderia dar-lhes vida, insuflar-lhes o espírito, proporcionar-lhes o ritmo.
Oxalá foi e se escondeu na oficina de Olorum, ansioso por presenciar o misterioso encanto do surgimento da vida. Mas, dos olhos e do pensamento de Olorum, nada escapa e sabendo que Oxalá o espiava, o fez cair em um sono profundo.
Oxalá nada viu e o segredo da vida permaneceu com Olorum e até hoje Oxalá faz o corpo, através do amor que une um homem e uma mulher, porém, apenas o Ser Supremo, Olorum, pode dar-lhe vida
[3].



[1]Ifê; em idioma ioruba significa “vasto”.
[2] Ilê; casa
[3] Mito Ioruba (África Ocidental) sobre a criação: J.F. Bierlein, MITOS PARALELOS; tradução: Pedro Ribeiro; 2003, Ediouro Publicações S.A.

RESPLANDECER



Amor que chegaste agora
Pegando-me em hora tão desprevenida
Perguntas-me o que move a vida
E eu fico sem saber o que te dizer

De minha boca
saem somente doces palavras
para certeiras fazerem moradas
em teu coração bem-querer
onde em aconchego
calam-se em segredos
São elas ninhos macios
de pequenos passarinhos

Há dias que não descanso
As noites me consomem
Meus olhos ardem de espanto

Foi-se a primavera
Guardei-me em uma longa espera
Mas o amor finalmente resplandeceu

para mim através de ti





quarta-feira, 17 de setembro de 2008

OS TORMENTOS DE UM JARDIM DE INFÂNCIA

para Clarice


Nos tempos do jardim de infância, também fiz um destes testes para saber se podia passar para a sala do primeiro ano, afinal já sabia ler e escrever. Naquele tempo, Clarice, ainda existia a distinção “primeiro ano A forte; primeiro ano B fraco”, e, assim, sucessivamente... Pode uma coisa dessas? Nem me lembro do resultado em si, mas, daí um pouco, para minha confusão, tinha abandonado a salinha agradável que era o jardim de infância, para começar a verdadeira vida escolar.
Não tive a tua sorte e não havia amigo nenhum pra me consolar ou proteger dos medos que, em minha mente infantil, ganhavam proporções exageradas; não possuía vivacidade, aliás, minha timidez era gritante, nem possuía a graça necessária para livrar-me das situações que a mim tornavam-se alarmantes. Chorava por qualquer motivo e por isso tome a ouvir os ralhos de minha mãe que toda vez me ameaçava pôr-me de castigo. Consolo mesmo só havia em meu pai, meu grande amigo e protetor.
Das amizades Clarice, o que dizer? Apenas que são “engraçadas” ou um completo mistério. Amizades vêm, vão e nem sabemos, às vezes, direito, como ou porque começaram ou terminaram. Vejamos: Tem quem tenha um melhor amigo desde o inicio de sua vida, uma amizade que segue a pessoa estrada afora. Outras têm um amigo que, por qualquer peripécia do destino, levou-os a separação, mas, quando este amigo retorna, volta, reaparece, parece até que nunca tinha ido a lugar nenhum tão constante o sorriso e o solidário “ombro amigo”, ou, então, tornam-se, um para com o outro, completos desconhecidos, estranhos, esquisitos... inimigos. Outros Clarice, nunca viram fulano ou sicrano na vida, porém, basta uma só troca de olhares, uma só troca de palavra... eis que surge “o melhor amigo de infância”. Minha modesta opinião Clarice, é de que as amizades como os amores são atordoantes mistérios, e, para finalizar, te digo que eu apesar de ter crescido e possuir um bom número de “amigos”, não parei ainda de chorar por qualquer motivo.

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