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domingo, 20 de abril de 2008

Na infância, não fui como todos, e não via o que todos viam. De fonte igual à deles, não podia eu retirar minhas paixões; e outra era a origem da tristeza, e outro era o canto, que despertava a alegria no coração. Tudo aquilo que amei, amei sozinho. Na minha infância, assim, no alvorecer dessa vida atormentada, elevou-se, no mal , no bem, de cada precipício, a prender-me, o meu mistério. Chegou-me dos rios, chegou-me da fonte, chegou-me do avermelhado declive do monte, chegou-me do sol, que por inteiro me cobria em outonais dourados clarões; chegou-me, enfim, dos relâmpagos escarlates, que, sobrenaturais, riscavam o céu; e do trovão e da tempestade, da nuvem que se ia, só, no vasto azul tão puro, como se ante meus olhos, houvesse um demônio. 
(Edgar Allan Poe)

sábado, 19 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA




LENDA DA TAPIRAGEM [1]

Antes, no escuro do mundo, só havia os deuses, contidos em sua própria luz. Eram possuidores de tudo e de nada precisavam.
Um dia, acharam necessário repartirem sua luz e sabedoria, e assim criaram o mundo, colocando nele tipos e modos de vidas diferentes.
Nas árvores e nas plantas, nos animais e na terra, os deuses esconderam as tintas, guardando em segredo que o encanto das cores se encontrava nas penas das aves. Ainda era muito escuro e o homem nada via.
Os deuses esperaram, esperaram e acharam que era necessário a partir de sua luz; criarem o sol e a lua para iluminarem os caminhos dos primeiros abaúnas 2.
O sol e a lua foram criados ao mesmo tempo, e então, Kúat e Iaê, os deuses da sabedoria, mostraram a natureza como um guia para o homem, para que dela, cuidando e respeitando, eles pudessem manter aberto o contato com as divindades.
Mas o homem começou a sentir inveja da beleza e colorido das aves que voavam no céu. Achavam que deviam ser tão bonitos quanto elas. Procuraram imitá-las, pintando o corpo e dançando, na esperança de um dia, também, poderem voar e ficarem perto dos deuses.
Devido à inveja, as aves foram mudando. Das plumas arrancadas ou caídas pelo chão, os homens faziam bonitos enfeites, tentando imitar suas cores nas tintas que usavam para pintar o corpo. Pintavam a pele para dar mais vida e alegria à sua existência, dar mais cor às cores e voar, voar, voar...
Fisicamente, o homem jamais conseguiu voar feito as aves, porém, naquelas horas, seu espírito voava, voava tão alto, que chegava à morada dos deuses e nesses momentos de sagrada comunhão, os deuses sorriam e acreditavam que era possível um futuro para o homem.


********



1 TAPIRAGEM: Palavra derivada do dialeto crioulo das Guianas. Prática comum de diversos grupos indígenas de quase toda América do Sul (Tupi, Karibe e Jê... ) que consiste na alteração do colorido original da plumagem das aves de estimação, tornando-as total ou parcialmente amareladas ou marmoradas de vermelho, parecendo até que foram “pintadas à mão”. Referências a este costume constam já nas primeiras crônicas e trabalhos dirigidos para a Historia Natural do Novo Mundo, no final do século XVI. Manuscritos de 1587, cujo autor se desconhece, falavam já desse fenômeno, existente entre os tupis do litoral. A denominação tapiragem para tal prática somente foi adotada algum tempo depois.

2 abaúnas: índio primitivo de raça pura.


Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Editora Valer

quinta-feira, 17 de abril de 2008

BLUE MODE



Hoje a melancolia me invade... isso costuma acontecer muito comigo, sou naturalmente melancólica, faz parte de minha natureza. Pra piorar, chove, (novidade...?!) e logo pela manhã o barulho do rádio do vizinho invadiu o meu quarto... no noticiário as noticias de sempre. Antes costumava acordar com o canto de pássaros, mas já faz tempo que o quintal do meu vizinho deixou de ser uma pequena floresta onde a noite sumia por dentro... Apesar de tudo, ainda há canto de pássaro... Não consegui mais dormir... Agora, decorrida metade da manhã, diante do meu notebook, escrevo, e, enquanto escrevo, vou escutando um velho blues na voz de Big Bill Broonzy... Cansaço! Eu, mesmo sem estar longe de minha terra natal, me sinto com “banzo” também... Minha saudade é outra, mas não menos amarga. Foi nas vozes de lamento, que subiam das plantações de algodão, no sul dos Estados Unidos, que nasceu o Blues, que, no modo comum de falar do Delta do Mississipi, em sua tradução, quer dizer “melancolia”, melancolia que passava das almas e dos corações para as vozes dos seres transformados em escravos que então procuravam amenizá-la, cantando... eu não canto, mas escuto... e me sinto com “banzo”. Arrancados de sua terra, pelo uso extremo da força, viajando em precárias condições, amontoados nos porões em navios apelidados de “tumbeiros”, para virem plantar e colherem algodão, milho e tabaco para os brancos em estados de Nova Orleans, Mississipi, Alabama, Louisiana e Georgia os “negros” eram puro desalento...Quanto sofrimento! Nos campos, sob a claridade do sol, punha-se um deles a entoar um verso, que era, em seguida, repetido em coro, pelos outros. As “work-songs” (canções de trabalho) só eram permitidas pelos fazendeiros por imprimirem um ritmo, uma cadência, ao ato de plantar e colher e assim deixar o “negro” menos triste. A principio, as canções eram entoadas nas línguas nativas, como o banto e yoruba, mas, com o tempo elas foram se misturando ao idioma inglês, e, invocando sempre a ajuda de DEUS, a música acabou servindo como um canal, para expor e “curarem” seus males, não só a saudade da terra natal, mas, também, as dores de amores e da miserável condição humana. Eu também tenho um blues dentro de mim, e, sai assim, como as antigas “work-songs”, começa aos poucos, num murmúrio e se alonga com a respiração e o pensamento, um lamento... Meu blues sai de meus dedos, salta nas palavras, nas páginas em que escrevo, nasce das histórias que leio, renasce nos contos que reconto, vive nos contos que invento e no dia a dia que reinvento. Meu instrumento é o teclado de meu computador... onde pulsa, em descompasso, o meu coração.




terça-feira, 15 de abril de 2008

ANNA E BEATRIZ [1]


Na praia, sob o sol de um maravilhoso dia de verão, Anna e Beatriz constroem castelos de areia. Elas conversam animadamente enquanto vão dando forma às suas magníficas obras.
Anna é moreninha, tem os cabelos cheios de cachos e um sorriso doce. É muito extrovertida e adora fazer perguntas. Beatriz é completamente diferente. Seus cabelos, de tão claros e brilhantes, chegam a ofuscar a própria luz do sol. Exagero? Vocês não conhecem Beatriz... Uma cortina de fios de ouro desce por sobre seus ombros, escondendo a perfeição do rosto infantil. Quase não fala, fato que preocupa e intriga os pais, porém, quando está com Anna, não parece haver o menor problema.
Ultimamente, as duas amigas só têm se encontrado na praia, pois, Beatriz acabou de se mudar para uma casa nova e Anna ainda não teve a chance de ir visitá-la. Anna está curiosa para saber como Beatriz se sente, e então, dispara a lhe fazer perguntas.
“Que tal Bibi, gostas de tua casa nova?”.
“É... Gosto...” Respondeu Beatriz, sem muito entusiasmo.
Ana não se contentou, queria saber mais.
“Hum! Que resposta mais sem graça, Bibi. Então, agora me diz como é a tua casa por dentro?”.
“Ah! Minha casa é muito boa; é grande, confortável, tem varanda e jardim onde os pássaros cantam o dia inteiro. Acho que ela só tem um defeito”...
“Um defeito?” Estranhou Anna. “E qual é?”.
Beatriz, solta um suspiro de desânimo.
“É que dentro da minha casa não entra o sol, e eu gosto tanto de sol”...
“Mas, e o jardim? Não há sol no jardim?”.
“Sim, no jardim há bastante sol; lá, há sempre sol”.
Anna e Beatriz se calam por um momento. Os castelos já estão quase prontos, mas, Anna deixa Beatriz se ocupando com os últimos detalhes. A menininha põe a mão no queixo e franze o cenho, sacudindo a cabecinha cheia de cachos. Ela está preocupada, pensando no que seria possível fazer para ajudar a amiga a resolver aquela difícil situação. De repente, “Eureka”, encontra a solução, “mas é claro! Como diria meu pai, é óbvio”.
“Já sei, Bibi, como resolver o teu problema!”.
“Sabe Anna?” Pergunta Bibi, que de tão contente quase desfaz os castelos. “Então, não perde tempo e me conta logo de uma vez”...
“Escuta, Bibi, se não entra o sol dentro de tua casa, mas no jardim há sempre bastante, por quê, então, não mudas a tua casa para o jardim?”

********
Do livro EL CABALLO MÁGICO; Caravana de Sueños, Idries Shah; 1988; Editorial Kairós. Tradução e adaptação, Virgínia Allan

segunda-feira, 14 de abril de 2008

MEDIEVAL [1]



Bem ao Norte, em uma longínqua terra de nome estranho,
há uma rocha muito alta e muito larga em que, uma vez a cada mil anos, no alto de seu pico, 
pousa um pássaro a fim de afiar o bico.
Dizem que um dia da eternidade se esgotará somente quando a rocha se desgastar; 
quando, finalmente, o pássaro não tiver onde pousar nem onde o bico afiar.




















[1] Loon, Hendrik. W. Van The Story of mankind
Lenda Medieval (Allan, 2005)

domingo, 13 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na praça da Matriz


DAS IGREJAS E OUTRAS CONSTRUÇÕES - MANAUS


Outro dia, fui até o Mercado Adolpho Lisboa e na volta passei em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Gosto de igrejas. Gosto do silêncio que domina o ambiente: bom para pensar e livrar a alma do peso de preocupações. Gosto de apreciar suas arquiteturas, de estilos diferentes e antigos; mas em todos esses anos passei ao largo de algumas, o que é indesculpável, sendo Manaus rica do jeito que é destes templos sagrados... Estudei em colégio de freiras, o Preciosíssimo Sangue, mas que nem por isso administrava, graças a Deus, uma disciplina férrea. Por sinal, era bem moderno, tanto no modo de ensinar quanto no modo de corrigir os erros. Amava muito o colégio. Lembro-me que chorei quando meu pai resolveu tirar-me de lá.
No meu tempo, a igreja do colégio ficava num pedaço do terreno, bastante aprazível, cheio de árvores e bancos de pedra, onde muitos dos alunos iam sentar-se, aproveitando o frescor da sombra. Dali, alguns sumiam, explorando mais além o quintal das irmãs; fosse para roubar frutas, fosse a fazer passeios românticos.
Agora, não existem mais as árvores e acho que nem os bancos de pedra, nem os quintais. A igreja ainda está no mesmo lugar. Só não sei se por dentro ela continua a mesma. Era linda, com predominância do vermelho. Sua arquitetura me lembrava os monastérios medievais, mas com uma pincelada de sofisticação contemporânea.
O altar, de mármore branco, com piso vermelho recoberto por tapetes também vermelhos. No teto, uma cena impressionante; a pintura de um pelicano arrancando sua própria carne para alimentar os filhotes. Na minha ignorância pré-adolescente, pensava naquele sacrifício e não conseguia entender porque é que uma imagem dolorosa ficava em local tão exposto! Afinal, todo mundo olha para o teto, principalmente as crianças. Somente anos mais tarde é que pude entendê-la.
Do outro lado da rua, em frente ao colégio, havia também a igreja de São Geraldo com o inesquecível padre Henrique, à porta, toda vez que a missa terminava. Amavelmente, o jovem padre cumprimentava a todos os paroquianos, um a um, até as crianças. Há alguns anos, destruíram a velha igreja, construindo outra, em minha opinião mais feia, de linhas irregulares... mas, levem em conta, é minha opinião, uma leiga, no assunto. Na verdade não entendo nada de arquitetura...
Ao chegar em casa, decidi fazer uma pesquisa, pois a curiosidade aguçou-me as idéias. Corri para o escritório de meu pai e vasculhei suas estantes e gavetas atrás das histórias que ele não me contava. Era um grande arquivista, com mania de guardar tudo o que lhe interessava e que um dia, quem sabe, fosse precisar? Então, relendo vários livros e recortes de jornais amarelados e roídos, descobri detalhes bem interessantes, não só das igrejas, mas também de alguns prédios, que eu, mesmo achando-os belos, não me preocupara nunca em visitar, a começar pelo próprio mercado de ferro Adolpho Lisboa, construído a partir da necessidade da cidade em expansão.
As obras da “Ribeira dos Comestíveis” iniciaram-se em 2 de agosto de 1882, sendo então aprovado o contrato com Backus & Brishin (Belém)
Em 14 de julho de 1883 as obras ficaram “prontas e foram recebidas provisoriamente”, sendo o mercado inaugurado, levando-se em conta as divergências criadas em torno, no dia 15 de Julho ou segundo outros, a 15 de agosto de 1883 pelo presidente José Lustoza da Cunha Paranaguá.
O mercado de ferro, cujo teto é “sustentado por 28 colunas desse metal” é o resultado de um conjunto de construções de épocas anteriores, um prédio com “duas caras”, uma de frente para o Rio Negro e a outra voltada para a rua dos Bares.
Ao todo, o mercado é composto por quatro pavilhões, sendo o principal o maior e localizado ao centro da casa; dois laterais e um perpendicular aos outros três.
O mercado de ferro leva o nome de Adolpho Lisboa, um dos prefeitos de Manaus.
Agora, o Palácio da Justiça: Idealizado por Eduardo Ribeiro, um visionário atordoado 1884 em pleno apogeu da borracha, somente foi inaugurado em 1900, pelo então governador João Ramalho. A firma inglesa Moers & Morton, foi a responsável pela construção. Em mais de cem anos de história, passou por algumas reformas, mas nada que abalasse suas formas características. No início dos anos 60, construiu-se um anexo, do qual, no momento não me interessa falar.
O Palácio, de estilo eclético, é inspirado na arquitetura do Segundo Império Francês e do neoclassismo inglês - creio que a isto chama-se também ''art noveau'' - apresentando uma extravagante mistura de adereços. Na entrada, eis uma escadaria toda de mármore, enquanto sobre o pórtico principal repousa a estátua da deusa grega Têmis. Sabe-se que Têmis usa uma venda nos olhos, simbolizando a lei e a justiça, uma das quatro virtudes cardeais, que deve ser aplicada, com todo rigor, a qualquer um; não importando a classe social, a cor e o poder aquisitivo. Entretanto, curiosamente (e confesso que jamais notei), a estátua do Palácio da Justiça não tem venda e a balança que carrega na mão esquerda pende, em imperceptível desequilíbrio, mas para um lado do que para outro. Na mão direita sustenta uma espada, e, logo abaixo, um medalhão com uma palavra em latim: Lex (Lei). Li em algum lugar que em referência à execução da lei, ela é também representada com uma cabeça degolada ao colo. Aqui, um aparte, por favor. Algumas pessoas hão de concordar comigo que a deusa de olhos vendados possui - talvez a intenção real fosse mostrar imparcialidade - um sentido ambíguo. Quanto à balança queiramos ou não, nunca permanecerá em equilíbrio, ela sempre penderá mais para um lado do que para o outro. É uma questão de justiça ou injustiça, como queiram alguém saberá diferenciá-las, defini-las com precisão? Alguém importante, mas que não me lembro agora quem foi, disse certa vez que “homens bons e justos jamais precisariam pesar seus atributos” Sendo assim...
Forçoso me é dedicar ainda algumas linhas ao maior orgulho de nossa cidade, o Teatro Amazonas, pedra preciosa cravada no meio da floresta. Ele não pode passar despercebido, é necessário juntar-me ao coro de louvações. Lá estive muitas vezes e não me decepcionei. Surgido da necessidade de ampliar os espaços culturais, o Teatro levou quinze anos para ficar pronto. Todo o material utilizado em sua construção, e mais os objetos de decoração foram trazidos da Europa, aparte as madeiras das quais são feitas as cadeiras e, o piso, que vieram da Bahia. Foi inaugurado em 31 de Dezembro de 1896, com uma apresentação da Companhia Lírica Italiana. Sua cor original era rosa, mas já foi pintado de azul e cinza. Desde a última reforma, porém, está rosa outra vez.
A cúpula, uma armação de ferro, importada da França, que poderia parecer estranha e fora do lugar, é um charme a mais nessa construção neoclássica. Não sei se é o costume de vê-la ali desde menina, brilhando ao sol, singela recordação das estórias do Oriente. Conta-se que na época, acharam-na de uma extravagância sem tamanho. Possui 36.000 telhas vitrificadas de cerâmica decorada, formando os contornos da bandeira brasileira, e ao contrário do que muitos acreditam, a cúpula é fixa e não giratória.
Nem preciso dizer que, como toda construção antiga, as histórias de fantasmas correm soltas pela imaginação. Assombrado! Talvez, mas, por um tempo lírico e luxuoso que não vivemos e que mesmo assim, teimamos em manter. Embora sejam intrigantes todos esses fatos, não irei alongar-me. São tantos detalhes, tantos assuntos, tantas divagações... Voltemos às igrejas, que foram o motivo destas minhas evocações.
A Igreja de Nossa Senhora dos Remédios foi construída em cima de um cemitério indígena. Para mim não é novidade, pois era comum ouvir essa afirmação sobre quase todas as praças e prédios de Manaus. Antes, no início do século XIX, era apenas uma capela, reformada no ciclo de ouro da borracha, em estilo neoclássico com influências renascentistas, elaborada pelo italiano Felintho Santoro. É um dos templos mais antigos de Manaus.
Outro magnífico monumento deste período lendário é a Igreja de São Sebastião. É a que mais aprecio. Quis lá batizar minha filha, porém desisti ao constatar que a humildade de São Francisco estava um tanto quanto esquecida. Bem, este é um outro assunto. De estilo neoclássico, ela pertence aos padres capuchinhos desde 1888, época de sua fundação. Possui um belíssimo interior com pinturas que cobrem a cúpula, o teto inteiro e as paredes, importadas da Itália e que, por sorte, continuam intactas. Merece destaque a pintura do teto logo à entrada, feita por Ballerini, mostrando o martírio de São Sebastião. É uma pena que, ao longo do tempo, a igreja tenha perdido diversos objetos, tais como vasos sacros de porcelana e ouro. A igreja também não possui uma das torres que, dizem alguns, perdeu-se no mar, durante um naufrágio quando de sua vinda para cá.
Da igreja da Matriz, há muito o quê dizer. Construída de frente para o rio Negro, em 1685, pelos missionários carmelitas, era no começo, apenas um casebre de aparência rústica. Em 1850, destruída por um incêndio, ressurgiu gloriosamente numa Manaus enriquecida com a exploração da borracha. É considerada a primeira grande obra da cidade, de estilo neoclássico, com linhas retas, imponente em sua austeridade sem ostentação.
No ano de 1875, instalaram-se os sinos, que hoje estão para serem restaurados. Ao todo eles eram oito, mas agora são sete, porque um deles está rachado e não há como o recuperar, vindos de Portugal, mas a igreja, do jeito como se mostra atualmente, foi inaugurada em 1888. Nesta ultima reforma, começada em Agosto de 2001, fizerem várias descobertas interessantes, dentre elas está uma garrafa de vinho não totalmente vazia, pois dentro dela há um bilhete com dois testemunhos deixados à posteridade por um mestre de obras e um frade. Ambos portugueses; ambos com o mesmo nome, Francisco. O verso e o reverso de uma mesma folha de papel. O verso e o reverso de homens diferentes? Dois homens, dos quais pouco se sabe; dois homens que, talvez, tivessem se conhecido dois homens que, talvez, houvessem sido amigos; ou então, não! Largarei de fazer suposições. Vai ver, fossem apenas dois homens unidos pela vontade em comum de deixar por escrito, mesmo que em poucas linhas a lembrança de suas existências, assim, tomando de uma folha de papel ofício, Francisco Conejo escreveu o seguinte.
“O Francisco Conejo foi quem edificou esta matriz veio no ano de 1859, 08 de outubro officio de pedreiro em laminado, nas cinco ordem de arquitetura e arte na décima ordem Filho de Caxias, esta foi com minha mão própria”.
No papel, Francisco colocou ainda a sua idade, 44 anos, acrescentando sobre sua assinatura a palavra “difunto”; em seguida, foi a vez do frade, que no reverso da folha, deixou também impressa a sua mensagem.
“Pelo décimo quarto frade Francisco Ferreira Marques, português, frade 13 anos em 5 de fevereiro de 1862, fiz esta às 3 ½ da tarde
2
”.
A garrafa aguardou 140 anos, até que alguém a encontrasse. Ela fora posta de propósito, mas com todo cuidado, entre as pedras que impediam a passagem para uma das portas que fora fechada em reformas anteriores. Um belo e romântico registro.
À Igreja da Matriz fui uma vez com mamãe na procissão de Nosso Senhor Morto. Até hoje não gosto de pensar no corpo da estátua de Cristo, coberto de chagas, com os olhos fechados e o coração sangrando, ficava muito impressionada. Sempre que íamos lá, mamãe fazia questão de sentar-se na praça à espera da missa começar. Levantava-se somente ao toque das duas primeiras badaladas, então mandava que parássemos de brincar e tomando-nos pela mão, subíamos os lanços da escadaria.
A entrada na igreja era silenciosa, com uma respeitosa genuflexão, em seguida, escolhido o banco certo, punha-se a desfiar o seu rosário de aflições (Sim! Porque aflita, minha mãe sempre foi). Enquanto ela rezava, ficávamos a olhar as paredes, contentes do seu esquecimento momentâneo.
Eis que chego a uma igreja que conheço de “ouvir falar”; a Igreja do Pobre Diabo. Oficialmente é a Igreja de Santo Antônio e somente no dia do Santo é que ela tem suas portas abertas, para que os devotos possam fazer pedidos e pagarem suas promessas. Diz-se que um comerciante português, Antônio José da Costa, encomendou uma tabuleta a um sujeito andrajoso, a qual, depois de pronta, afixou à porta de sua quitanda. Na tabuleta estava escrito: Ao Pobre Diabo...
Quando o senhor Antônio morreu, sua viúva, dona Carolina Rosa de Viterbo, em homenagem a ele e ao santo, mandou construir uma capela. Isso foi pelo ano de 1897. Ninguém nunca a chamou pelo nome do Santo, era sempre a Capela do Pobre Diabo. É tombada como patrimônio histórico pelo Governo do Estado desde 1965.
Para finalizar, como última apreciação, farei, em rápidas linhas, uma visita ao Cemitério de São João Batista, fiel depositário de meus receios juvenis. Ainda posso ver o sol, passeando sobre as mangueiras, no inicio das manhãs, as mangas maduras, cobiça e regalo da meninada, caídas no chão. Estas mangas eram as mais famosas, e também as mais rejeitadas, da cidade. Lembro-me bem de meu irmão mais velho e um amigo, nosso vizinho em suas andanças, à cata de aventuras, aparecerem suados e sorridentes, com sacos carregados dos deliciosos frutos. A alegria era imensa e, então, todos acorriam, alvoroçados, prontos a porem as mãos nos deliciosos frutos. Momento ansiosamente esperado por meu irmão, que num olhar de cumplicidade com o amigo, acabava rapidamente com a festa, ao revelar que as mangas eram do cemitério e como tal propriedade dos mortos, portanto, ai de quem comesse, pois de noite eles viriam para assombrar aqueles que as tivessem comido. No mesmo instante, as mangas eram deixadas de lado e, calmamente, os dois endiabrados, às gargalhadas, comiam-nas até se cansarem.
É no cemitério São João Batista que repousam os restos mortais de Eduardo Ribeiro, Álvaro Maia, Adriano Jorge e por aí vai! A jovem violinista, Ária Ramos, assassinada num baile de carnaval em 1915, também lá descansa, tendo, inclusive, uma estátua para perpetuar sua memória. (O cemitério está cheio delas; verdadeiras obras de arte, importadas da Inglaterra ou da Itália, para enfeitar os túmulos dos mais ilustres). Mas, o cemitério São João Batista, não é privilégio de gente importante ou rica, é também o lugar, como todo cemitério, de gente pobre e comum, esteja ele morto ou vivo, assim como eu... Digo isso porque era por dentro dele que passava sempre que necessário para atalhar caminho. Diante de seus portões, parava um segundo, olhava pra cima e lia a frase inscrita em latim Laborum Meta (Fim do Trabalho), frase esta que eu incansavelmente repetia como uma mantra, e ao repeti-la, sentia uma estranha sensação, mistura de angústia e libertação, uma espécie de morte, antes mesmo da verdadeira morte. Assim, rapidamente acostumei-me à quietude de suas sepulturas e por lá ficava horas a fio, sentada naqueles bancos feios e antigos, lendo, pensando, ou então, apreciando a beleza de alguns rostos pintados à mão, delicadamente, sobre finas porcelanas, contando as histórias de toda uma vida. Quanto mais velho era o túmulo, mais me despertava a atenção.
Ah! Doce e seguro (e mórbido, complementarão outros) refúgio, dos arroubos de juventude! Excentricidade de uma idade, onde os sentimentos e os problemas ganham exageradas proporções. Hoje, já não faço mais isso. Levei alguns sustos, provocados pela dama de negro e um enorme vazio quase me sufocou. Perdi meu pai, meu marido e uma boa lista de parentes, amigos e conhecidos, e, desde então, não voltei mais a por os pés em nenhuma cidade dos mortos. Nós, os tais seres racionais, membros da “grandiosa comunidade humana”, somos realmente muito complicados. O terreno do cemitério pertencia a um senhor conhecido por Mocó e foi com este apelido que o bairro e o reservatório de água que existiam no local se tornaram conhecidos.
É...! Não foi exatamente um passeio turístico, mas serviu para aumentar minha admiração. O período áureo da borracha é um tempo que me assombra... Saber que tanta riqueza já reinou por aqui, me deixa maravilhada, e agora que começo a envelhecer, tenho a certeza de que jamais serei uma cidadã da Manaus Moderna. Sou, antes, a cidadã da Manaus morena, cidade sorriso, coberta de ouro, cheirando a pupunha e tucumã cidadã do lugar fabuloso de meu pai, onde se ouve o canto mágico do uirapuru, e onde, no fundo das águas escurecidas, dorme a cobra-grande. Vive, dentro de mim, a Paris das selvas, eterna, com suas ruas e sua gente! Eu sei quem sou...! Demônio feminino do inferno verde, huri do paraíso amazônico.



2 Jornal A Critica, Edição de 19 de Julho de 2002


Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Editora Valer

sábado, 12 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA



DUAS HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO

 
Fantasmas, assombrações, encantados. Quem é que não tem uma história para contar?
Eu, particula
Frmente, não acredito, porque vê, nunca vi. Nesses casos, sou igual a São Tomé. Mas, meu pai, minha mãe e outros membros de minha família tiveram alguns contatos com o incompreensível.
Comecemos, pois, por meu pai, que nunca cansava de contar-nos as diabruras aprontadas pelo primeiro marido de minha avó.
Nascido e criado no município de Santa Isabel do Rio Negro, papai era muito amigo de causos mirabolantes e se ao contá-los percebesse no ar qualquer sinal de incredulidade, jurava de pé junto que nem tudo era mentira.
Minha avó, que atendia pela alcunha de Branca (Eleutéria, seu nome de batismo, que ela, com toda razão, detestava) enviuvara cedo.
Mulher arrogante; autoritária, possuía algum dinheiro, herança de Casemiro, o pobre coitado que havia passado dessa para melhor.
Com um toque de maldade, (sei que não é de bom tom falar mal dos mortos, mas, olvidemos um instante este detalhe), em se tratando de Casemiro, passou mesmo pra melhor, chegou aos meus ouvidos que os mandos e desmandos de vovó eram terríveis! Suportá-la, deveria ser uma provação, um castigo, por um pecado cometido ao longo do caminho, e que agora exigia expiação.
Fato é que coisas estranhas começaram a acontecer na casa de minha avó. Louças voavam, objetos sumiam, nem as crianças escapavam; levavam sovas quando, pensando que ninguém estava vendo, preparavam alguma travessura. Aliás, no início, elas é que levaram a culpa pelas louças quebradas e os objetos sumidos. Levavam sovas dos vivos e também dos mortos (aqui, no caso, do morto). Tentavam se defender, dizendo que era tudo culpa de Casemiro, mas não adiantava, e tome sova, ouvindo repetidamente, que era feio mentir, e ainda por cima culpar os mortos. Quem morre, morreu, não volta, e tome sova. Coitados.
Vovó começou a lhes dar razão quando os empregados, reunidos na roça conversavam animadamente. Nisso, um deles contou uma piada, mas ao pararem de rir, uma risada continuou, alta, sarcástica e bem-humorada. Não tiveram dúvidas, era mesmo Casemiro metendo bedelho em assunto de vivo.
Na casa, ai daquele que fosse se sentar à cabeceira da mesa. Todo dia, na hora do almoço, lá estava prato, copo e talher, do jeitinho que era antes. Olhe, foi tanta aporrinhação, ninguém agüentava mais. Não se conseguia esconjurar o fantasma e mandá-lo de volta pro breu de onde veio.
Entretanto, minha avó, sangue quente de espanhol que, estranhamente, não havia sido molestada, resolveu acabar com aquilo. A gota d'água se deu no comércio, quando ela, muito distraída, fazia o balanço do dia. Suavemente, sentiu algo lhe subir nas pernas e parar em lugar proibido. Ah! Pra quê, só podia ser artes do safado, que nem morto sossegava de suas safadezas. Desta vez, haveria de voltar, por bem ou por mal, pros quintos dos infernos, de onde nunca deveria ter saído. Disposta, foi até em casa e pegou uma espingarda de grosso calibre e saiu atirando. Correria geral. Branca, quando se enfezava, sei não, melhor sair da frente.
O fantasma, eu não sei se, a principio, intimidado, se aquietou, mas quando viu o trabuco virar pro seu lado, mesmo morto, apavorou-se; apavorou-se tanto que na hora de sumir, deixou o relógio cair. Minha avó, que possuía um raciocínio rápido e frio, associou logo o relógio à aparição, e naquela noite mesmo, fez desenterrarem o defunto e enrolando o relógio, muito bem enrolado, num pano liso e fino, meteu-lhe no bolso da roupa carcomida, devolvendo-o depois à sepultura. Posso afirmar, dizia meu pai, embora nessa época não fosse nem nascido, que dessa noite em diante, nunca mais o assombroso apareceu.


*********

Agora, quero falar de minha mãe, que tal qual meu pai passou muito tempo, escondida nos matos.
Conta-se que meu avô, cabra macho da Paraíba, sumiu de casa aos dezesseis anos, vindo parar aqui, neste fim de mundo. Isso faz muito tempo, e ninguém se zangará se repetir que aqui era ''um fim de mundo''. Expressão engraçada, mas, menina ainda minha mãe, ela achava mesmo que aqui era o fim. Sempre metida por dentro dos matos, carregando quilos de piaçava
1 nas costas, fizesse chuva, fizesse sol; estivesse boa, estivesse doente. Vida dura, sofrida, de gente com apenas o pirão de farinha e peixe para comer.
Moravam nas cabeceiras do rio Ipixuna onde, pra se encontrar um vizinho, haja chão pra percorrer, e minha mãe, menina ainda, tinha toda razão em acreditar que aqui só podia ser um ''fim de mundo''. Quando não estava ocupada carregando piaçava, ficava cuidando dos irmãos menores, que meu avô, cabra macho da peste, tratou de providenciar. Sozinha menina ainda, com tantos afazeres, chegava a chorar de tanta solidão.
Vovô poderia ter enricado e prover assim um futuro melhor para sua família, mas era daqueles que não ligava contente por ter um prato de pirão de peixe e uma rede armada no jirau. Era um cabra da peste, daqueles que achavam que mulher havia nascido para ser escrava, melhor dizendo, burro de carga, sem vida pra viver, sem sonhos pra sonhar.
Para os outros, era um deus benfazejo. Seria capaz de dar a roupa do corpo, ou o último alimento da família ao ''necessitado''. Era o melhor amigo do regatão
2, e nem por isso, por causa de uma briguinha besta, escapou de ser quase assassinado pelo dito amigo.
O regatão, “amigo da onça”, isto sim, era um homem ruim, tão ruim que um dia, ao anunciarem-lhe a morte de um dos pescadores, desabou num choro convulsivo. Preocupados e admirados; os outros lhe consolaram, dizendo que se soubessem que tinha tanta estima pelo fulano, teriam tido mais cuidado ao lhe darem a funesta notícia.
O homem enxugou os olhos na manga amarelada da camisa e muito zangado, disse: ”Ora, e eu estou lá incomodado porque fulano morreu... O que me deixa passado, na verdade, é o fato do desgraçado, que me devia dinheiro, ter morrido sem me dar sequer um tostão. Se soubesse que seria assim, teria lhe despachado antes”.
Mas nada disso animava vovô a arredar os pés dali. Ele somente concordou após um fato, que por mais cabeça dura que fosse, foi forçado a se render.
Eis aqui o ocorrido: Já disse que, naqueles tempos, perdidos no ''fim de mundo'', para se achar um vizinho, devia-se percorrer, léguas e léguas de mata fechada, enfrentando escuros e os perigos do caminho; ou então, pegar a canoa e sair remando rio afora, até chegar no próximo vilarejo. Também já disse que moravam nas cabeceiras do rio Ipixuna, na mais completa solidão.
Um dia, minha mãe, sozinha (como sempre), lavando roupa na beira do rio, no meio do dia, deu em cheio com uma assombração, solenemente pairando acima das águas. Levantou os olhos devagar, e foi subindo, o corpo todo se acabando em tremedeira, o arrepio correndo a espinha. O fantasma não surgiu inteiro, podia-se ver apenas da cintura para baixo, mas era mulher e usava um vestido (ou saia) verde, e não demorou a pedir um favor.
“Ouça, minha filha, ouça com muita atenção. É do favor que me farás que obterei meu descanso eterno, não precisando mais importunar o mundo dos vivos. Guardo um segredo que me consome e preciso revelá-lo. Chamo-me Ana e moro pros lados do Matupiri. Hoje está fazendo um mês de meu falecimento. Há alguns anos atrás, roubei um São Benedito do oratório de minha irmã. A coitada sofreu tanto com o sumiço da relíquia! Aquele santo escurinho só lhe dava alegrias. Peço que o devolvas e desculpe-se por mim, implore que me perdoe. O santo está num nicho, aberto na parede, atrás do velho armário da cozinha. Vamos, prometa que vai me ajudar”...
Mamãe ouviu, prometeu e correu. Medo do que não se conhece, todo mundo tem.
Contou sua história, porém, vovô não acreditou e teria ficado por isso se minha avó, impressionada pelo relato, não tivesse se amofinado. Ficou tão doente, que o marido, foi constatar se era ou não verdade. Pegou sua canoa e rumou para o Matupiri. É não é que era realidade real e verdadeira! Encontrou o viúvo da assombração, que confirmou que dona Ana falecera há mais de um mês e foi enterrada com seu melhor vestido; um vestido verde; de bom caimento, que só usava aos domingos. Acorreram à cozinha e empurraram o armário; lá estava, dentro de um nicho aberto na parede, a imagem do santo.
Acontece que a irmã de dona Ana morava na capital, e meu avô ainda relutou em cumprir o prometido. Então minha avó continuou, dia a dia, amofinando. Não teve outro meio e com palavra dada não se brinca. Era sina da família teriam que cumprir. Assim, vieram para Manaus e minha mãe, fez o que devia ser feito. Aos pés de São Benedito, a irmã de dona Ana acendeu uma vela, para que iluminasse a passagem da alma recém-libertada. Mamãe nunca mais viu nada; vovó curou-se e vovô aprendeu uma lição.




1 piaçava ou piaçaba: palmeira de fibras usada em vassouras.
2 regatão: Aquele que regateia. Indivíduo que percorria os rios da Amazônia trocando ou regateando mercadorias. 

Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Eidtora Valer

CANÇÃO NO ESCURO


Tempos outrora, o cego, na esquina da rua, cantava acompanhado da viola. Ao seu lado, deixava o chapéu surrado, para receber os trocados de alguma alma piedosa.

E eu, tal como o cego tocador de viola, também canto uma canção no escuro, que distrai meus pensamentos de antigas recordações. E sem chapéu surrado ou acompanhamento, me vejo pedindo esmolas do impiedoso tempo.











quarta-feira, 9 de abril de 2008




A word is dead
When it is said
Some say
I say it just
Begins to live
Taht day

(Emily Dickinson)

*****

A palavra morre
Assim que é proferida
Disse alguém com sabedoria
Digo eu apenas
Que a palavra uma vez proferida
Começa a viver a partir desse dia.

(Virgínia Allan)

terça-feira, 8 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA



Segundo os índios Kamayurá, Moronetá é toda forma de explanação verbal ou narrativa, mas que pode ser também visual. Moronetá é como o espelho, refletindo uma realidade de uma outra ordem, diferente daquela na qual julgamos viver.

*****

Escuta piá [1], a estória que vou contar. Há muito tempo eu queria fazer isso, mas tu não me davas ouvidos. Sempre entretido com a televisão, com os videogames ou com o computador. Hoje, que consegui te pegar num instante de devaneio, aproveitarei. Vem cá esquece um pouco estes teus amigos e senta aqui comigo no jupá [2]. A janela está aberta e assim poderemos apreciar a paisagem.
Em que pensavas antes de eu chegar? Estavas triste? Por que, piá?
Não ouves mais o canto da cigarra? É! Também eu, aqui, já não a escuto. Só quando penetro nos confins da floresta. Mas, se serve de consolo, ainda se ouve o cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos.
É noite! Lá fora, o vento passa sussurrando antigos segredos. Estava tão ansiosa para te contar a história que agora nem sei por onde começar.


MORONETÁ


Num tempo sem tempo, ainda na aurora do mundo, um curumim [3] vagava perdido pela floresta.
Depois de muito andar, chegou, por fim às margens de um lago, onde se sentou para descansar e matar a sede, mas, ao inclinar-se...''erê!'' [4] Assustou-se. Havia um outro menino dentro do lago. ''Como ser isso?’’ Pensou. Recuou, desconfiado. Mas, a sede era tanta que resolveu aproximar-se novamente. Devagar, inclinou-se, e só então percebeu que era ele mesmo refletido nas águas calmas.
O curumim, de assustado, passou a apreensivo. Nunca vira nada parecido, pois na taba onde morava a fonte possuía água escura como a noite.
''Kaáguara [5] brinca comigo. Roubou minh’alma e deu para os espíritos das águas.''
E foi assim que, tratando de recuperá-la, mergulhou no lago, transformando-se no mesmo instante, num pequeno e colorido pirá [6].
O peixinho nadava solitário e sempre subia à superfície, tentando, aos saltos, alcançar às suas margens. Nem sabia direito porque fazia aquilo, mas algo o impelia a fazê-lo. De dentro do lago olhava, com olhos tristes; para um estreito caminho que lhe parecia tão conhecido, porém, não demorava muito cuidando do assunto; logo mergulhava de volta e recomeçava a nadar, pra lá e pra cá, pra cá e pra lá...
Uma tarde, porém, em que jasytatá uasú [7] surgia linda e brilhante no céu, o peixinho conseguiu lançar-se para fora do lago e, no mesmo instante, voltou a ser menino. Olhou ao redor, procurando o estreito caminho que agora sabia estar escondido entre as árvores. O peixe esquecera que na verdade, ele era um menino, mas o menino não esqueceria jamais, que um dia, havia sido um peixe e graças a esse estranho fato encontrara o caminho de retorno.
Teria uma estória para contar ao redor da fogueira, naquelas noites vazias em que os velhos esperam a morte chegar. As crianças a ouviriam, e depois a contariam aos seus filhos, que, por sua vez, a contariam para os filhos de seus filhos que...
''Certa noite de lua, o nosso vovô, o valente guerreiro Curumim, mergulhou num lago de águas mágicas e virou um enorme pirá. Tão grande tão grande era o nosso avô, que virou rei!''
E o menino seguiu contente caminho afora, direto para casa, rumo à Grande Aldeia das Aves de Penas Brancas.


*****

[1] piá: criança
[2] jupá: esteira
[3] curumim, colomi ou coromim: menino, rapazola.
[4] erê: interjeição que exprime espanto, surpresa, alegria ou mofa. Usual entre os índios e caboclos da Amazônia
[5] Kaaguara: Habitante do mato. Espirito do mal que constantemente prejudica os índios em seus afazeres.
[6] pirá: peixe
[7] jasytatá uasú: estrela grande. A grande estrela da manhã e da tarde.






Do livro MORONETÁ; Crônicas Manauaras; Editora Valer

Cantilena do Corvo

EE-SE BLUE HAVEN

Ee-se encontrou Ahemed na saída de Hus. Dirigia-se ela aos campos de refugiados, nos arredores de Palmira, enquanto Ahemed seguia com seu pa...