Um corvo, um cobre

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terça-feira, 14 de outubro de 2008

ORA PRO NOBIS



Há um mar por dentro de mim
que ora calmo, ora violento
vai em ondas quebrar
na praia do meu desalento
Não sofro mais como antes
porém, não sorrio com tanta avidez
Não desperdiço o tempo que necessito
iludindo-me com insatisfeito,
torto viver
Preencho com este mar bravio
o que ainda me resta de vazio
Sinto sede, sinto frio...
Mas, ciente da dor que se foi
que aos poucos, lentamente,
se esvaiu
Sorrio, agora, incerto da certeza mortal
que tudo encerra, do silêncio sepulcral que nos cerca
o cotidiano feito as pressas, cheios de emendas e detalhes
que nunca se desfazem
Aonde foram parar as horas?
Enfim, deixarei de lado
meu rosário de lamentos
Ai, minha Nossa Senhora Desatadora dos Nós
Ora pro nobis







segunda-feira, 13 de outubro de 2008

À NEGRA SENHORA DOS OLHOS DE ESTRELAS



Meu coração está só e de aflição ele chora

Não ouço os vossos passos, senhora,

e não mais escuto a vossa voz

O sol esfriou e a aurora perdeu a sua cor

A solitária andorinha voou, partiu para além do mar

Triste, o pássaro cativo também anseia voar,

pois noutra terra está a donzela de negras tranças e suave sorriso

Ela, mais bela que a distante lua,

despiu-se do seu manto de grandeza e humildemente,

para o chão volveu seus olhos de estrelas:

“Ouve”, disse ela, “o amado já vem”

sábado, 11 de outubro de 2008

O FOGO QUE DERRETE O VÉU



Jalal ud-Din Rumi




Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras
compreende o que não se deixa
capturar pelo entendimento

Dentro do coração empedernido do homem
arde o fogo que derrete o véu de cima abaixo
Desfeito o véu
o coração descobre a história de amor
entre a alma e o coração
Regressa sempre
em vestes renovadas

Ao recitares “sol”
Contempla o sol
Sempre que recitares “não sou”
contempla a fonte do que és




Poemas Místicos, Divan de Shams de Tabriz; Tradução de José Jorge de Carvalho; Attar Editorial

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA-SEM MAIS VERGONHA DE VIVER




SEM MAIS VERGONHA DE VIVER

Para Clarice


Eu ainda sou tímida Clarice, mas ando perdendo a vergonha de tudo, principalmente a vergonha de viver. Preciso achar e manter meu lugar no mundo; e, quem sabe, encontrar um “cantinho” ao sol afinal, dei-me conta, enfim, de que tenho todo e total direito de viver e fazer o melhor por mim e por aqueles que estão ao meu redor. Não peço mais desculpas Clarice por eu ser quem e o quê sou...?! E quem ou o quê sou eu afinal? Já me fizeram essa pergunta, constantemente me faço essa pergunta... Ainda não sei quem sou... sei o que não sou, ou pelo menos, o que não tento ser. Sei apenas que, como todos, busco uma saída às incertezas da vida, tentando ver e extrair de cada momento a reposta certa para tão enigmática pergunta que sempre vem no sopro do vento. Quem sou eu...?! Sou um desenho rabiscado; mosaico fragmentado de realidade, talvez sonhada, talvez vivida, mas, que, entretanto, está sempre em busca de aperfeiçoar-se e assim já não peço desculpas por existir.
Dizes que a alma do tímido anseia pela solidão, pois, somente assim consegue se libertar, mas, eu, apesar de toda a minha atrapalhada e indesejável timidez, não quero mais estar sempre só, não sou mais tão contraditória e em alguns casos desejo ardentemente o calor do aconchego com outras pessoas.
Não trabalho fora; não tenho chefe Clarice e, portanto, tenho a vantagem / desvantagem de não precisar pedir aumento de salário a ninguém, nem como escolher o melhor modo de me apresentar e me comportar nesse tipo de situação, uma tortura a menos. Tímida e ousada, posso me definir assim também, e, lembro-me que uma vez, em meu tempo de estudante de colégio, tive a coragem de interpelar um guarda que espancava um garoto de rua com um cacetete, um “gesto heróico” que deveria ser comum a quem luta contra a omissão e a indiferença que nos rodeiam e mantêm-nos reféns. Rompi meu próprio invólucro de medo, soltei a voz e consegui ajudar o garoto. Na tarde deste acontecimento, outras pessoas juntaram-se a mim. Fizemos a diferença ao nos unirmos e gritarmos a uma só voz: “basta!”.
Nunca montei a cavalo, nunca joguei xadrez, nem nunca conheci alguém tão simpático quanto o japonês que você conheceu e ainda hoje me confundo na hora de ler o cardápio, sempre solicito a ajuda de quem está ao lado. Minhas audácias foram pequenas, mas me ajudaram a compor a quem ou o quê agora sou e muito agradeço a mim mesma por isso. O encabulamento, que me atrapalhou algumas vezes, não foi empecilho para seguir em frente. Sabe Clarice, vou te contar um segredo: ainda pergunto aos “meninos” se querem brincar comigo e vez ou outra, sou desprezada. Não importa. Há tempos só falo de amor e continuarei a falar de amor, sempre, já que aos nove precoces anos eu nem pensava em “amor” tanto assim.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

OS MEIOS ADEQUADOS




Um mendigo aproximou-se de um homem rico e pediu-lhe que, por caridade, lhe desse uma esmola.
- Pede a Deus que te ajude – Disse o homem rico.
- Já pedi e Deus me respondeu dizendo: Vai e pede ajuda daquele homem - Objetou o mendigo.
- Finalmente encontro um homem que se dá conta de que cada coisa deve seguir os procedimentos adequados. Seria magnífico que as pessoas estivessem aqui presentes e pudessem assim comprovar este principio.
Como conseqüência deste episódio, o mendigo foi devidamente recompensado
.

Do livro El Caballo Mágico, Caravana de Sueños, Idries Shah; adaptação e tradução Virgínia Allan

terça-feira, 7 de outubro de 2008

REFLETE EM TEU VIVER



Reflete em teu pensar, em teu viver
O tamanho da chama de teu querer
O poder; a força e por causa dela, aonde ainda ou quê,
poderás ir ou vir a ter

Sê como as velhas histórias
Que o povo repete sem parar
Ora contada em breves partes
Ora contada como se nunca fosse acabar

Aprende com o passado, vive o presente...
O futuro o que será... será...?!
O desejo ardente leva-te para frente
Se não te detiveres por muito tempo
Consumido, desolado a olhar para trás a chorar

Há culpa, “pecado”, ciúme e orgulho entrelaçados
na tiara encantada do poder, do pudor e do desengano
Há tristezas e alegrias ao longo do percurso
Há fantasmas, almas penadas, solitárias à beira da estrada

Lanças ao ar as últimas notas
De um blues azul antigo e espera tranqüilo à porta de entrada
de um paraíso almejado mas não idealizado
E por fim, digo-te apenas, como um ponto final:
Insere-te por inteiro na paisagem como parte do sol

sábado, 4 de outubro de 2008

SÃO FRANCISCO DE ASSIS




04 de Outubro é dia de São Francisco,
protetor dos animais e dos excluídos
No céu, brilham irmão sol e irmã lua
Na terra, de alegria cantam os pássaros,
pululam os peixes nas águas
O fogo murmura consigo uma prece
em louvor ao santo amigo





No ano de 1181 (2?) no dia 04 de Outubro do calendário romano, nascia na Itália, na cidade de Assis, o menino Francisco, único filho de Pedro Bernardone, um rico negociante de tecidos, e de sua esposa Madonna Pica.
O seu nome, a principio, seria Giovanni, possível escolha de sua mãe, porém, seu pai, que, dizem, possuía um grande amor pela França, acabou por rebatizá-lo como Francisco.
Na juventude, Francisco era um boêmio; um alegre trovador e como trovador, falava a linguagem dos trovadores, o provençal. Devo esclarecer que é fato sabido que os trovadores eram descendentes de músicos e poetas sarracenos, e um ponto de concordância entre os estudiosos é que a penetração de ordens dervixes muçulmanas no Ocidente, foi de enorme influência para o florescimento e o desenvolvimento de ordens monacais religiosas na Idade Média, estando Francisco, mais tarde como fundador de uma delas, a Ordem dos Frades Menores, entretanto, antes disso, temos de admitir, segundo alguns historiadores, que Francisco tentou, sem sucesso, seguir os passos do pai na lucrativa carreira de comerciante.
Pensando encontrar sua vocação nas armas, entrou para o exército aos vinte anos, na companhia militar de Gualtieri de Brienne.
Conta-se que Francisco foi chamado três vezes por Deus à conversão religiosa e depois de convertido adquiriu um estranho poder sobre pássaros e animais, chegando inclusive a amansar um lobo feroz que andava a atormentar as redondezas.
Sobre o santo Francisco de Assis versam muitas histórias, todas bastante interessantes, (desde problemas familiares, passando por doenças, romances, estigmas e milagres) mas, aqui quero ressaltar o seu lado poeta místico e de onde afinal, tirava inspiração para poemas belíssimos como o Cântico del Sole (Cântico do Sol), considerado o primeiro poema italiano, poema este composto logo após sua volta do Oriente... Bem, tudo indica que Francisco bebeu direto da fonte do sufismo.
Idries Shah, em seu livro OS SUFIS, nos conta que Francisco de Assis, homem de percepção extraordinária, ao chegar a idade dos trinta anos, fez três tentativas (novamente o numero três) de chegar ao Oriente, em busca talvez, de suas raízes trovadorescas, tendo na última destas três, partido para as Cruzadas em direção a cidades de Damieta, sitiada então pelo sultão Malik El-Kamil, acampado do outro lado da margem do Nilo.
Francisco adentrou o acampamento sarraceno na intenção de converter o sultão ao cristianismo. Porém, apesar de não conseguir o seu intento, mesmo assim, caiu nas graças do sultão Malik, admirado da imensa capacidade de Francisco, e ele além de dar-lhe um salvo conduto para ir vir quando quisesse ainda deixou que este pregasse abertamente o cristianismo aos seus comandados.
Essas idas e vindas ao acampamento “inimigo”, e a extrema simpatia que lhe devotava o sultão, tiveram seus efeitos e provocaram profundas mudanças em Francisco. Muitos acreditam que finalmente Francisco, entre o exército sarraceno, sua corte e seus príncipes, achara o que estava procurando.
Francisco morreu em Assis em 1225 e foi sepultado na Igreja de São Jorge. Dois anos após sua morte, em 16 de Julho de 1228, é canonizado pelo Papa Gregório IX.

Paz a todos e repito, para finalizar, os dizeres do poeta Jalaludin Rumi, citado ainda por Idries Shah: "Ainda que faças uma centena de nós, a corda continuará sendo uma só"




CÂNTICO DO SOL


Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória e a honra
E toda a bênção
Só a ti, Altíssimo, são devidos
E homem algum é digno
De te mencionar

Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor Irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor
De ti, Altíssimo, é a imagem

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo
Pela qual às tuas criaturas dás sustento

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe terra
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações
Bem aventurados os que sustentam a paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes á tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!

Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças
E servi-o com grande humildade


sexta-feira, 3 de outubro de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA-FELIZ ANIVERSÁRIO




FELIZ ANIVERSÁRIO


Perdoa meu amor
Em não ter vindo antes
Aliás há muito tempo
que aqui não venho
Mas quero que saibas
que não me sais do pensamento

 
Não te trouxe amigos
Não te trouxe flores
Não te trouxe vinho
Não te trouxe filhos
Vim eu só comigo
Perturbar a paz de teu espírito

Vai-se o verão
Vacilo por um instante...

Em que triste abandono te encontro
Quase em ruínas está a tua casa
Cinza pequena e fria laje
Sem enfeites sobre a dura campa
Dormes de forma confortável
no pedaço de terra tão desejado?
Os vermes ainda te consomem?
Ainda são longas as dores infames?
Sou pássaro de piar tristonho
Saudade do que fomos


Não deito mais a cabeça em teu ombro
Hoje minhas noites são só agonia
Pouca quase nenhuma alegria
Enquanto teu corpo volta ao pó da terra
Continuo eu na vivência incerta de uma longa espera, 

no monótono passar das horas
  Da falsa tranqüilidade dos repetitivos dias

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

UM CERTO VERÃO

(Quadro_Henri Matisse _Dinner)





Logo a casa se encherá de risos
Mas a alegria não será mais a mesma
Foram-se os tempos felizes
Em que todos brindavam à mesa

Há uma alegria solitária
Escondida pelos cantos e vãos das janelas e portas
Doces versos, rimas mortas
Sem espaço para se expressarem

Sim... Sobram espaços vazios
Cheios de alegre tristeza
Família aumenta, diminui
Multiplicam-se incertezas

Os fios de cabelos outrora negros, tão escuros
Hoje são de prata sobre a cabeça cansada
Lindo véu tecido pelo passar do tempo
Juventude que se foi, como um dia, em um certo verão que, num instante chegou
e mais rápido passou!

O coração agora já não bate descompassado, apaixonado
Bate em ritmo calmo, controlado
Guiado pela tranqüila certeza
Da vida construída com justeza
Da fé cultivada no peito
E do amor, claro e duradouro, que a tudo isso tornou possível

Logo a casa se encherá de risos
Mas a alegria, certamente, não será mais a mesma...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA-O EXERCÍCIO DA MALDADE





O EXERCÍCIO DA MALDADE

para Clarice

O exercício da maldade pela pura maldade eu não o senti. Questionamentos sobre maldade / bondade requerem reflexões mais profundas e complexas (será?!) e, que sei eu? Mas das “pequenas maldades”, destas sim posso falar, as conheci, as senti literalmente na pele, desde o colégio.
Naquela época uma menina adorava nos dar beliscões; puxar-nos cabelos e outras coisinhas mais. Era um terror encontrá-la todo santo dia na escola, em sala de aula, pois o “anjinho de candura” em questão era minha colega de classe. Bem, seu pai não era dono de livraria e sua mãe não parecia com mãe nenhuma. Lembrava mais uma boneca pintada demais, uma caricatura, uma bruxa de pano. A menina também era assim; puro exagero. Gorduchinha, moreninha, cabelos curtíssimos e um busto que já prometia; ela, realmente era precoce, precoce em tudo menos no bom uso da inteligência; talvez não pudesse... Apesar das reinações; digo essas pequenas torturas que gostava de nos infligir, eu não conseguia sentir raiva, sentia pavor e pena por ela ser desse jeito. Minha intuição dizia que tinha algo muito errado com ela, com a mãe dela, não era “normal”, digamos assim, ser como elas eram e agir do modo que agiam.
Minha intuição se confirmou ao saber, anos depois, que ela ficara completamente louca, em dado momento de sua vida, sua mente oscilou, vagueou e se perdeu para todo o sempre. As suas “maldadezinhas” infantis não passavam das primeiras manifestações de um cérebro doente.
Em minha adolescência, conheci outro garoto com o mesmo gosto pelo sadismo, precisavas ver com que prazer nos mordia e nos tascava beliscões, nós, garotas, fugíamos dele como o diabo da cruz.
Em relação a livros e o exercício da maldade posso te contar a minha experiência. Ainda na adolescência, tive uma vizinha que possuía um tesouro inestimável (e que ela não dava o menor valor) que eu muito ambicionava; a obra completa de Machado de Assis, de capa dura e verde, a cor da esperança, esperança que tinha eu de que um dia ela viesse parar mim. A coleção, já principiando um estado de deterioração causado por mofos; ácaros, traças e baratas, devido ao estado de abandono, metida e esquecida que estava por dentro de caixas de papelões, sempre encostadas, esquecidas em um canto. Minha vizinha nem sequer se dava ao trabalho de trocá-las.
Além de Machado de Assis, ela ainda possuía, para dor em meu coração, pois estes também viviam por dentro de caixas de papelões alimentando todo um mundo de pequenos seres, visíveis e invisíveis, uma coleção de contos de autores russos, que iam do antigo ao contemporâneo.
Um dia, Clarice, meu sonho se realizou. Imagina você que num ataque de limpeza, ela resolveu desfazer-se dos livros, de todos eles, mas para sua “insatisfação”, ao abrir as caixas; muitos já não prestavam tão carcomidos e envelhecidos pela falta de uso, e poucos deles foram de proveito. Baratas e aranhas saltavam aos montes, isso sem falar dos cupins... Meu coração bateu descompassado. E se Machado estivesse no mesmo estado lamentável? Que desperdício.! Que triste fim para um tesouro de inefável valor...
Ela dirigiu-se a caixa onde estavam os livros de Machado e a abriu com cuidado... Não queria outra vez ser surpreendida pela rapidez de um salto de aranha ou o nojo causado pelo rápido e agonizante passeio nos braços que costuma dar uma barata, e eu, por minha vez, ficaria livre de seus pulos e gritos.
Para nosso alivio, Machado resistira com bravura, mesmo amarelado e combalido da batalha contra o tempo em que mofos; traças; ácaros; baratas e seus derivados reinam absolutos.
Minha vizinha foi bem generosa, mas o mesmo já não posso dizê-lo de sua mãe... Pois é minha alegria logo se converteu em decepção. Minha vizinha, sabendo de meu interesse por leitura, especialmente no que dizia respeito àqueles livros, fez-me uma proposta irrecusável. Eu levaria a coleção comigo e poderia pagá-la em lentas prestações. Aceitei; óbvio, Clarice, sem nem pestanejar, farias o mesmo, e, muito contente (contente é pouco para se dizer) trouxe os livros para casa, o que não me custou nada, já que a mesma morava defronte a minha... e que alegria sentia ao saber que a obra completa de Machado de Assis, era, agora, minha, só minha, sempre ali, tão verdinha, a qualquer hora, a minha espera. Poderia lê-la sem pressa, acariciá-la, namorá-la, degustar cada palavra, entrar em cada história, em cada personagem. Amando com eles, odiando com eles, vivendo com eles. Pegava um; pegava outro, abria, lia uma frase, relia... e meu lugar predileto, era a cama, em que deitada de bruços, punha-me a sonhar.
Ah, Clarice, posso dizer que, como tu, eu vivia no ar, e o pudor e a graça, e até o recato, eram constantes em mim, porém eu não tinha um; mas sim vários amantes. Era de lamber os beiços de tanto prazer.
Todavia, minha alegria durou pouco, na verdade, só o tempo de ler Os contos; e, os romances, Helena e Dom Casmurro. E casmurra fiquei eu depois do que aconteceu.
A mãe de minha vizinha, ao saber da transação, não gostou, e num ato de egoísmo, misturado a despeito, inveja e ciúme, ela que nunca havia lido um livro, nem mesmo sabia quem havia sido Machado de Assis, foi, em pessoa a minha casa pegar os livros de volta; e fez tamanho estardalhaço que me vi obrigada a devolver a coleção. Que pesar...! Ver o meu sonho realizado, de repente, sair porta afora, levado por mãos arredias e alma ignorante. A esperança, desde então, para mim, se me afigurou como um sentimento intimidador, enganador. Quando sinto esperança, sinto-me enganada em minhas expectativas, burlada em minha intuição. O “mal” que a mãe de minha vizinha tinha me infligido, fruto apenas da ignorância, não deixa de ser uma das piores formas de maldade existente.
Se eu sei, enfim, o que aconteceu a obra de Machado? Disseram-me que a mãe de minha vizinha, a deu a uma sobrinha que acabara de se formar em magistério, mas, que nem por isso o velho e bom Machado; teve um tratamento digno. Continuava sublocado, metido por dentro de caixas de papelões ou largado, indiferente, em algum canto.
Recuso-me a guardar ressentimentos, procuro exorcizá-los, mandá-los para longe, para que não cresçam e apodreçam o que há de bom dentro de mim, mas esta é uma das recordações ruins, uma das banais, senão a mais, que custo a esquecer... Esquecer não... Esquecer o que tanto marcou a gente nunca esquece, mas não deixei que virasse mágoa, rancor, dor doída que amarga a vida.
Minhas recordações doloridas, hoje, são pura melancolia e estão adormecidas no fundo de uma caixa de vidro que, certamente, mais cedo ou mais tarde, se quebrará.
Ainda não possuo as obras completas de Machado de Assis, mas, um dia, quem sabe... Hiii... lá vou eu... Xô, esperança... fora, vai embora, pra longe daqui
!

Cantilena do Corvo

EE-SE BLUE HAVEN

Ee-se encontrou Ahemed na saída de Hus. Dirigia-se ela aos campos de refugiados, nos arredores de Palmira, enquanto Ahemed seguia com seu pa...