O EXERCÍCIO DA MALDADE
para Clarice
O exercício da maldade pela pura maldade eu não o senti. Questionamentos sobre maldade / bondade requerem reflexões mais profundas e complexas (será?!) e, que sei eu? Mas das “pequenas maldades”, destas sim posso falar, as conheci, as senti literalmente na pele, desde o colégio.
Naquela época uma menina adorava nos dar beliscões; puxar-nos cabelos e outras coisinhas mais. Era um terror encontrá-la todo santo dia na escola, em sala de aula, pois o “anjinho de candura” em questão era minha colega de classe. Bem, seu pai não era dono de livraria e sua mãe não parecia com mãe nenhuma. Lembrava mais uma boneca pintada demais, uma caricatura, uma bruxa de pano. A menina também era assim; puro exagero. Gorduchinha, moreninha, cabelos curtíssimos e um busto que já prometia; ela, realmente era precoce, precoce em tudo menos no bom uso da inteligência; talvez não pudesse... Apesar das reinações; digo essas pequenas torturas que gostava de nos infligir, eu não conseguia sentir raiva, sentia pavor e pena por ela ser desse jeito. Minha intuição dizia que tinha algo muito errado com ela, com a mãe dela, não era “normal”, digamos assim, ser como elas eram e agir do modo que agiam.
Minha intuição se confirmou ao saber, anos depois, que ela ficara completamente louca, em dado momento de sua vida, sua mente oscilou, vagueou e se perdeu para todo o sempre. As suas “maldadezinhas” infantis não passavam das primeiras manifestações de um cérebro doente.
Em minha adolescência, conheci outro garoto com o mesmo gosto pelo sadismo, precisavas ver com que prazer nos mordia e nos tascava beliscões, nós, garotas, fugíamos dele como o diabo da cruz.
Em relação a livros e o exercício da maldade posso te contar a minha experiência. Ainda na adolescência, tive uma vizinha que possuía um tesouro inestimável (e que ela não dava o menor valor) que eu muito ambicionava; a obra completa de Machado de Assis, de capa dura e verde, a cor da esperança, esperança que tinha eu de que um dia ela viesse parar mim. A coleção, já principiando um estado de deterioração causado por mofos; ácaros, traças e baratas, devido ao estado de abandono, metida e esquecida que estava por dentro de caixas de papelões, sempre encostadas, esquecidas em um canto. Minha vizinha nem sequer se dava ao trabalho de trocá-las.
Além de Machado de Assis, ela ainda possuía, para dor em meu coração, pois estes também viviam por dentro de caixas de papelões alimentando todo um mundo de pequenos seres, visíveis e invisíveis, uma coleção de contos de autores russos, que iam do antigo ao contemporâneo.
Um dia, Clarice, meu sonho se realizou. Imagina você que num ataque de limpeza, ela resolveu desfazer-se dos livros, de todos eles, mas para sua “insatisfação”, ao abrir as caixas; muitos já não prestavam tão carcomidos e envelhecidos pela falta de uso, e poucos deles foram de proveito. Baratas e aranhas saltavam aos montes, isso sem falar dos cupins... Meu coração bateu descompassado. E se Machado estivesse no mesmo estado lamentável? Que desperdício.! Que triste fim para um tesouro de inefável valor...
Ela dirigiu-se a caixa onde estavam os livros de Machado e a abriu com cuidado... Não queria outra vez ser surpreendida pela rapidez de um salto de aranha ou o nojo causado pelo rápido e agonizante passeio nos braços que costuma dar uma barata, e eu, por minha vez, ficaria livre de seus pulos e gritos.
Para nosso alivio, Machado resistira com bravura, mesmo amarelado e combalido da batalha contra o tempo em que mofos; traças; ácaros; baratas e seus derivados reinam absolutos.
Minha vizinha foi bem generosa, mas o mesmo já não posso dizê-lo de sua mãe... Pois é minha alegria logo se converteu em decepção. Minha vizinha, sabendo de meu interesse por leitura, especialmente no que dizia respeito àqueles livros, fez-me uma proposta irrecusável. Eu levaria a coleção comigo e poderia pagá-la em lentas prestações. Aceitei; óbvio, Clarice, sem nem pestanejar, farias o mesmo, e, muito contente (contente é pouco para se dizer) trouxe os livros para casa, o que não me custou nada, já que a mesma morava defronte a minha... e que alegria sentia ao saber que a obra completa de Machado de Assis, era, agora, minha, só minha, sempre ali, tão verdinha, a qualquer hora, a minha espera. Poderia lê-la sem pressa, acariciá-la, namorá-la, degustar cada palavra, entrar em cada história, em cada personagem. Amando com eles, odiando com eles, vivendo com eles. Pegava um; pegava outro, abria, lia uma frase, relia... e meu lugar predileto, era a cama, em que deitada de bruços, punha-me a sonhar.
Ah, Clarice, posso dizer que, como tu, eu vivia no ar, e o pudor e a graça, e até o recato, eram constantes em mim, porém eu não tinha um; mas sim vários amantes. Era de lamber os beiços de tanto prazer.
Todavia, minha alegria durou pouco, na verdade, só o tempo de ler Os contos; e, os romances, Helena e Dom Casmurro. E casmurra fiquei eu depois do que aconteceu.
A mãe de minha vizinha, ao saber da transação, não gostou, e num ato de egoísmo, misturado a despeito, inveja e ciúme, ela que nunca havia lido um livro, nem mesmo sabia quem havia sido Machado de Assis, foi, em pessoa a minha casa pegar os livros de volta; e fez tamanho estardalhaço que me vi obrigada a devolver a coleção. Que pesar...! Ver o meu sonho realizado, de repente, sair porta afora, levado por mãos arredias e alma ignorante. A esperança, desde então, para mim, se me afigurou como um sentimento intimidador, enganador. Quando sinto esperança, sinto-me enganada em minhas expectativas, burlada em minha intuição. O “mal” que a mãe de minha vizinha tinha me infligido, fruto apenas da ignorância, não deixa de ser uma das piores formas de maldade existente.
Se eu sei, enfim, o que aconteceu a obra de Machado? Disseram-me que a mãe de minha vizinha, a deu a uma sobrinha que acabara de se formar em magistério, mas, que nem por isso o velho e bom Machado; teve um tratamento digno. Continuava sublocado, metido por dentro de caixas de papelões ou largado, indiferente, em algum canto.
Recuso-me a guardar ressentimentos, procuro exorcizá-los, mandá-los para longe, para que não cresçam e apodreçam o que há de bom dentro de mim, mas esta é uma das recordações ruins, uma das banais, senão a mais, que custo a esquecer... Esquecer não... Esquecer o que tanto marcou a gente nunca esquece, mas não deixei que virasse mágoa, rancor, dor doída que amarga a vida.
Minhas recordações doloridas, hoje, são pura melancolia e estão adormecidas no fundo de uma caixa de vidro que, certamente, mais cedo ou mais tarde, se quebrará.
Ainda não possuo as obras completas de Machado de Assis, mas, um dia, quem sabe... Hiii... lá vou eu... Xô, esperança... fora, vai embora, pra longe daqui!