Não faz muito tempo fui a um aniversário de criança e, lá, um garoto charmoso e cabeludinho, usando com orgulho uma blusa preta, com o nome da banda The Clash, para meu prazer, deu-me uma overdose de Ramones... Ramones na veia, embora diluído, posto que era a versão RAMONES FOR KIDS, mesmo assim fez um baita efeito. De repente, vi-me de volta ao “túnel do tempo”, quando eu ainda em plena contestação juvenil fui atraída pelo movimento punk. Imaginem, cheguei a andar de coturno e cabelo pintado e espetado, quase beirando ao radicalismo dos “carecas”.. mas esta é outra história... Aliás, voltando ao assunto, a música sempre foi muito presente em minha vida, desde pequena.
Na adolescência, vivenciando um pouco a “rebeldia sem causa”, mergulhei em sons e ritmos mais pensados / pesados, na tentativa de descarregar a raiva e a frustração interior. É que por baixo de minha aparência calma e tranquilizadora, era eu uma bomba; prestes a explodir, igual a qualquer adolescente, sem tirar nem por, e, nesse conturbado período da existência pelo qual todos nós passamos, nos perdendo e nos encontrando, tudo o que acontecia a nossa volta servia como pretexto, fonte de protesto e indignação, sendo o homem, como sempre, o alvo de toda essa marcação.
Há mais de um ano tenho mantido certa distância da música, desde a morte de meu marido, que era músico e tinha paixão por seu instrumento, o contrabaixo elétrico, e, só agora, lentamente, é que estou retornando a essa maneira maravilhosa de dar vida aos sentimentos.
Pois é... Mas enquanto cantava, ou melhor, sussurrava, “I wanna be your boyfriend”, “Sheena is a punk rock” e outras, tendo ao fundo o coro infantil, ia pensando a quantas anda o mundo e me deu uma profunda tristeza, mas também um pouco de felicidade e satisfação.
Lembrei-me com saudade desse tempo que já ficou pra trás e dessa gente que fez parte de minha vida e que nos dias de hoje pouco tenho visto ou tido noticias.
Sou saudosista? Sou sim, e muitos de meus textos giram em torno de recordações, do que é “isto ou aquilo” ou do assim é, mas bem que poderia ter sido... Pura recordação e saudosismo de um tempo em que a vontade de mudar, realizar o novo, era um imperativo. Porém, “como é comum de acontecer entre os homens” com tudo a gente se acostuma. Acostuma-se com as presenças e com as ausências, com o claro e com o escuro... E, muitas vezes, num ato de extrema e humilhante submissão, porque estamos “acostumados”, calamos a voz, baixamos a cabeça e os braços e depomos as armas, mas se fazemos isso, com relativa facilidade é porque não estamos acostumados, ainda, a ir à luta. Entretanto, a meu ver, o ontem não é melhor do que o hoje; só que hoje podemos acabar com tudo num abrir e piscar de olhos. Temos saudade de uma época que achamos que era melhor por termos saudade, na verdade, é de nós mesmos e de nossa capacidade de se indignar, de brigar, temos saudade de pensar que poderíamos fazer a diferença e revolucionar o mundo. Fizemos diferença, sim, mudamos muita coisa sim, mas a vida é um processo ininterrupto e enquanto dormimos, enquanto comemos, enquanto nos divertimos, enquanto envelhecemos tanta coisa continua a acontecer por aí, coisas boas e ruins.
Dizem que a desgraça e a alegria estão harmoniosamente espalhadas entre nós e assim vamos vivendo... até quando e até onde? Não sei, não sabemos... Conscientemente, o homem tem evoluído mas, às vezes me pergunto se haverá tempo para uma remissão, se haverá tempo de salvar-nos e dessa forma salvar a Terra, que, enquanto aqui estamos é o nosso lar e lar será dos que depois de nós haverão de vir, quer isto dizer que estamos todos em um mesmo barco, infelizmente, capitaneado por mentes sombrias e mesquinhas, é preciso então que nos juntemos e realizemos um motim, onde cada um possa empunhar a arma que melhor souber manejar.
Nos tempos atuais é necessário, não só aos jovens, mas a nós, ao homem, como um todo, que possamos ir além de idealismos e estados de utopia, é preciso que possamos ir além de nós mesmos com a mesma garra e raiva com que pensamos, outrora, provocar uma revolução. Nossa meta deveria ser sempre para o alto, porém, certamente nada nos protegerá de nossa própria estupidez e estúpidos temos sido já há um longo tempo.
Creio eu que é preciso haver progressos, mudanças e nesse caminhar da raça humana, muito ainda se perderá, muito ainda ficará para trás, as coisas são como são, mas nessa caminhada podemos construir, buscar um ponto de apoio, um “porto seguro” dentro e fora de nós.
Gosto de imaginar; acredito mesmo nisso, que a aventura humana sobre a Terra não é em vão e quando chegar a hora e tudo aqui tiver que deixarmos, depois de termos descoberto quem ou o quê; somos, e tivermos feito do melhor modo a nossa parte, iremos ter ao lugar onde todas as almas, centelhas de luz, retornam, ao lugar de origem, de volta ao Grande Sol, um sol enorme, que brilha e ilumina todo esse vasto Universo. Acredito, creio mesmo que há perdão para tudo, para todos e para todas as coisas. Acredito, creio mesmo que o sofrimento, muitas vezes desnecessário, não é inútil. Não podemos, e talvez jamais possamos entender certas coisas que nos acontecem, todavia é-nos necessário seguir e completar a jornada que nos foi confiada. Em relação a esta parte, a raiva contida dos meus tempos de adolescente tem me ajudado a sobreviver e vou tentando reter o temor e o desassossego em meu coração de um futuro incerto para que minhas filhas, e outros, em meu entorno, possam acreditar que tudo há de melhorar. E para cada criança abandonada, molestada, assassinada, haverá o dobro de crianças felizes e satisfeitas. Para cada ser perseguido, roubado, caluniado, haverá o dobro em prosperidade, confiança e justiça. Beijo minhas filhas com a esperança de que tudo isso seja possível. Que a ilusão não seja o alimento preparado e servido para os que esperam e trabalham por uma boa e nutritiva refeição.
Sobre o ato de recordar, li certa vez um artigo, cuja intenção ou propósito foge-me a memória, (perdoem-me aqueles que o conhecem se aqui cometo alguma ignorância em relação a este assunto, pois o tal artigo já o li faz tempo) em que o autor afirmava que todo saudosista é um necrofilo já que vive; nutre-se de coisas mortas. Não concordo. Recordar é preciso. Recordar nos ajuda a manter-nos sãos e vivos. Recordar ajuda-nos a lembrar de nós; de quem ou o quê somos e por que estamos aqui. Viver na recordação, fazer disso a base de sua sustentação é que não é necessário, como bem dizia o poeta Fernando Pessoa: Navegar é preciso, viver não é preciso, pois a vida não possui precisão, exatidão, muda a todo instante... O segredo é o equilíbrio. Para mim, necrofilia, morbidez é não recordar, como se isso fosse possível, e numa espécie de autofagia, digerir-se a si mesmo, culpando a Deus e o mundo por isto ter lhe acontecido. Ah, querem saber, me desculpem o palavrório... todo esse discurso só porque ouvi Ramones em versão infantil... RAMONES FOR KIDS...