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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

PIÁ ANDIRA, O SENHOR DOS AGOUROS TRISTES, E UMA AVENTURA EM BUSCA DO SOL



Era uma vez, há muito tempo, às margens furta-cores do rio Andirá, piá Andira, que vivia em uma crypta rochosa, perto de uma velha sumaúma. Mas, era só o sol fechar o olho amarelado e ir se deitar que piá Andira começava a se divertir, indo, primeiramente, à pescar no rio os pequenos e distraídos peixes, que, sob o luar, pareciam mais pedacinhos flutuantes de prata.
Embora piá Andira fosse um filho da noite, ele tinha um sonho e o sonho de piá Andira era ver o sol bem de perto; olhar se possível, dentro de seu olho.
“Sonho besta esse de pia Andira” dizia-lhe a lua, “Sabia, piá Andira” continuava a lua em sua cantilena, “que um dia o sol e eu já fomos gente? Nos amávamos muito, mas, nossa sina, piá Andira, é vivermos separados um do outro... ele lá e eu cá... cada um com seus respectivos filhos... e tu, piá Andira, és criatura da noite... não podes jamais mirar o sol e o sol por sua vez, mora tão longe, longe, longe... nem eu mesma sei direito onde ele se esconde; sei que é para além do horizonte, pra lá de onde o vento faz a curva, é só o que sei.”
Porém, piá Andira ouvia a mãe lua, fazia carinha de muxoxo e nem ligava. Pensativo subia para o oco da sumaúma e lá ficava esperando o sol abrir o olho, mas era fiozinho dourado brilhante de luz aparecer e pia Andira sumir para dentro da crypta. Difícil coisa ver o sol... Quem sabe se ele chegasse mais perto? Iria bater à porta de sua casa, seguiria a linha do horizonte, lá onde o vento faz a curva, como disse a mãe lua.       
Piá andira, um dia, ouviu falar de uma festa no céu... aí, teve uma ideia... foi de mansinho, à casa do urubu cantor e se enfiou dentro de sua viola. Ficou ali, escondidinho, no escurinho.
Manhã seguinte, urubu cantor pegou a viola e voou, voou até escurecer, chegar ao céu e começar a tocar.
O plin, plin da viola perturbou piá Andira que saiu num instante de dentro do instrumento... foi uma confusão...os outros bichos se assustaram com o voo rasante e às cegas de piá Andira, que havia fechado os olhos só por um momento a fim de se acostumar à luz,  e, na correria era um tal de “fecha, fecha, pega, pega, mata, mata”... coitado de piá Andira, que por sorte encontrou uma saída no cuari de uma nuvem.  
Piá Andira estava longe demais de casa, longe demais das águas do Andirá... longe demais do sol... passou o resto da noite voando, nem fome sentia e finalmente, cansado, pousou no galho de uma velha mangueira aonde, vigilante, estava uma coruja: “De onde vens e pra onde vais, morceguinho?” perguntou-lhe a coruja.
“Venho de águas do Andirá, fugi de uma festa no céu em que queriam me matar e vou agora, em busca do sol, cuja casa fica além do horizonte, lá onde o vento faz a curva, foi o que me disse a lua. Quero olhar dentro do seu olho”.
“Em busca do sol!? Como pode um morcego ter um sonho tão maluco? O sol é do dia e tu pertences à noite... Nem sabes direito o caminho que vai dar a sua casa, nem eu mesma sei onde fica... é preciso mesmo  seguir a linha do horizonte, lá onde o vento faz a curva, mas, como pretendes, com essas asinhas e esse teu voo descuidado., chegar até lá? São tentos os perigos nessa aventura... eu mesma já poderia ter te comido, a tua sorte é que estou satisfeita. Dizem que o sol um dia foi gente... Bom, chega de blá, blá, blá... já, já amanhece,  preciso descansar.”
A coruja encolheu-se no galho e piá Andira encolheu-se também, achou melhor contrariar seus hábitos e enfrentar a luz do dia. Nem bem havia amanhecido e piá Andira saiu dali.
A luz ainda doía-lhe nos olhos, pois havia tentado desesperadamente mantê-los abertos para ver o sol se levantar, e os raios queimavam-lhe a pele... Voou um tanto mais na linha do horizonte, quando deparou-se com as águas frescas de um riacho. Estava com fome e sede, resolveu parar à sombra que se estendia ao longo da margem. Enquanto comia, apareceu a onça para beber água.
 Piá Andira ficou desconfiado em ver um bicho tão grande por ali àquela hora do dia, mas a onça lhe falou: “Não se preocupe morceguinho... não vou lhe comer. Não me interessam essas asinhas fininhas e essas perninhas fraquinhas, tão magrinhas... se ainda fosses uma raposa... Aí sim... Estás perdido? Que fazes aqui a esta hora do dia?”
“Engraçado dona onça estava a me fazer a mesma pergunta sobre a senhora.”
“Ora... estive metida em uma caçada que não deu muito certo... mas, e você? De onde vens e para onde vais?”
“Venho das águas do Andirá, fugi de uma festa no céu, escapei dos gracejos de uma coruja e sigo em minha busca... vou à procura do sol, cuja morada fica além da linha do horizonte, assim me disse a lua, assim me disse a coruja”.
“Em busca do sol? Uma criatura da noite? Ai, não me faça rir... realmente estás no caminho correto, porém, a casa do sol é mais longe do que se possa imaginar... não estás nem no começo da jornada... nem eu mesma sei onde fica e depois são tantos os perigos...”
“Não importa quão longe esteja e que perigos existam pelo caminho. Eu nada temo.”
“Bravo morceguinho, louvo tua coragem, mas és como a formiguinha dentro do formigueiro tentando alcançar a lua.”
“Preciso ir” disse piá Andira “por enquanto só importa a viagem.”
“Vá, morceguinho, vá, vá... voe logo daqui e boa sorte.”
Piá Andira voou mais longe, seguindo a linha do horizonte, - onde será que o vento fazia a curva? - sem desviar um instante de seu objetivo. 
A noite caiu, a lua surgiu, as estrelas se acenderam e se apagaram... passou pelo vagalume, que, curioso, lhe perguntou de onde vinha, fugia do quê e de quem e para aonde ia, respondendo piá Andira que vinha das águas do Andirá, que fugira de uma festa no céu, dos gracejos de uma coruja e do sorriso falso de uma onça... “vou, vagalume, em busca do sol... sigo a linha do horizonte, onde o vento faz a curva... assim me disseram a lua, a coruja e a onça.”
“Siga por aqui, reto toda a vida”, disse o vagalume “e logo adiante encontrarás o vento que, ultimamente, anda um pouco lento. Pegue no seu pé ou suba em suas asas que num repente você chegará ao seu destino.”
Piá Andira voou, voou, voou... passou floresta, passou mar, passou, frio, passou fome, passou ponte, passou monte, passou chuva, chuvarada, passou pássaro, passarada... Passou, passou tempo, passou tormento... passou, passou... A noite caiu, a lua surgiu; as estrelas se acenderam e se apagaram... finalmente, piá Andira encontrou o vento, meio sonolento, fazendo hora dentro do campanário de uma igreja, brincando com os sinos, fazendo-os balançarem pra lá e pra cá, em um monótono blein, blein, blein...
Piá Andira aproveitou-se da mansidão, da frescura do vento e agarrou no seu pé e do pé, pluft, num segundo, pulou pras suas costas.
“Quem subiu em minhas costas sem pedir licença? De onde vens e para aonde pensas que vai?” Perguntou o vento, zangado.
“Eu, piá Andira, senhor dos agouros tristes, mas, que, se tornará o senhor felicidade quando encontrar o sol... Venho de águas do Andirá, fugi de uma malfadada festa no céu em que queriam me matar, escapei dos gracejos de uma coruja e das falsas intenções de uma onça e aceitei o bom conselho de um vagalume... por isso aqui estou... preciso que me leves, pois desde muito persigo a linha do horizonte onde mora o sol, assim me falaram a lua, a coruja, a onça e o vagalume... faltava apenas te encontrar para saber aonde fazes a curva... Estou cansado... minhas asas estão queimadas e minha visão prejudicada. Preciso que me leves.”
“Se este é o desejo de teu coração, prepare-se então... segure-se pequeno amigo.”
O vento, zuuuuuummm, voou na direção do oeste, rápido e certeiro como uma flecha. Passou nuvem, passou ponte, passou fonte, passou monte... passou céu, passou ar... passou mar... cruzou o espaço, estirou o tempo até alcançar a linha do horizonte... mas, quando chegou lá, bem onde faz a curva, voou com tanta ligeireza, que Piá Andira se desequilibrou e caiu... o vento nem percebeu e sumiu assobiando na curva do caminho e Piá Andira, coitadinho, foi rolando, rolando... parando, por fim, aos pés de um enorme e velho pé de jatobá,que, de tão coberto por ervas de passarinho, possuía um aspecto medonho, deveras assustador.  
“Quem és tu? De onde vens e para aonde vais?” Perguntou-lhe o velho pé de jatobá.
“Que susto me deste” disse piá Andira “que esquisita esta tua aparência... sou piá Andira, senhor dos agouros tristes, mas que ficará feliz quando encontrar o sol. Para isso persigo a linha do horizonte até bem onde o vento faz curva, onde fica a sua morada, assim me disseram a mãe lua... Venho das margens do rio Andirá; fugi de uma festa no céu aonde queriam me matar, escapei dos gracejos de uma coruja e das falsas intenções de uma onça, aceitei o conselho de um vagalume e peguei carona nas asas do vento, entretanto, lá bem onde ele faz a curva, me desequilibrei e cai... agora eis-me aqui, perdido, sozinho, se nem ter vislumbrado um fiozinho dourado da pestana do olho do sol.”      
“Hummmmmm, pequenina criatura... esquisito por esquisito tu também és. Não sei te definir... és um morcego ou um menino feio? Nunca vi nada parecido... metade uma coisa, metade outra; realmente, nada sei dizer-te sobre a morada do sol, sei apenas que estavas no rumo certo até caíres das asas do vento. Não fique triste, amiguinho. Acomode-se aí em meu tronco, deite-se em cima de minhas raízes e descanse.”
Piá Andira achou estranha a observação feita pelo velho jatobá... metade uma coisa, metade outra? Como assim? Olhou para si mesmo e viu que suas asas e garras haviam se transformado em braços e mãos; tocou o rosto e sentiu a pele fina e macia; uma pele humana... tocou as orelhas, mas as orelhas ainda eram pontudas e peludas e as pernas e os pés eram de morcego... piá Andira ficou assustado, mas estava tão cansado que deixou para depois pensar no assunto. 
Piá Andira logo adormeceu aconchegado ao tronco. A mãe lua passou por entre a copa da árvore e iluminou o menino-morcego. Suavemente, ela tomou-o em seus braços e acabou a transformação. Piá Andira era agora um belo menino.
Na manhã seguinte, piá Andira acordou com alguém a chamar-lhe pelo nome... deparou-se com um outro menino, iluminado como o sol, que lhe disse: “Tua busca terminou piá Andira... finalmente me encontraste. Olha bem dentro dos meus olhos e vês que não há mais diferenças entre nós. Eu sou tu, tu és eu. Vem comigo temos muito trabalho a fazer. De hoje em diante, pertences ao dia e ele só está a começar.”
Piá Andira, sob as bênçãos do velho pé de jatobá, segurou firme a mão que lhe era estendida e fundiu-se a luz irradiante, cada vez mais forte, que emanava do sol até sumirem ambos dentro da paisagem do cotidiano.  
E foi assim que terminou a aventura de piá Andira em busca do desejo de seu coração. Porém, quando escurecia, mãe lua olhava, saudosa, para a samaumeira onde o morceguinho costumava pousar depois de uma boa pescaria. Sentimental como ela só, derramava algumas gotas de lágrimas prateadas dentro do rio que então, imediatamente se transformavam em luminosos peixinhos.
Quanto a piá Andira, embora tenha alcançado o ponto máximo de sua jornada; ainda se lembrava de mãe lua e dos murmúrios noturnos das criaturas da noite se movimentando por dentro da mata e quando chovia forte sobre as águas furta-cores do rio Andirá, todos sabiam que era piá Andira, o sonhador menino morcego, a chorar, com saudades da mãe lua.         

sábado, 15 de janeiro de 2011


Preocupado, engoliu o molho de chaves com certo desconforto,
mas, talvez assim, quem sabe encontrasse finalmente uma saída!

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

PRIMAVERA NO MORRO


 
      Naquela manhã Tomás estava particularmente desanimado. O tempo passava muito rápido e ele precisava tomar uma decisão. Tentando organizar seus pensamentos, foi para a parte mais alta do morro e sentou-se à beira do abismo. O lugar, apesar de perigoso, é bastante agradável; lá, se tem a nítida sensação de que se pode tocar o céu. De repente, Tomás percebe que é primavera e uma alegria imensa inunda o seu coração, (é bom saber que ainda tem um coração.)
         Flores de todos os jeitos e tamanhos sobem e descem a encosta do morro, até os barracos estão tomados por elas. Havia se esquecido que esta é a sua estação predileta. Quem via tanta beleza espalhar-se como confete, não acreditaria que o morro, a cidade, o país, são como um esgoto a céu aberto, cheio de ratos e baratas. É triste ver como eles dominam tudo, contaminando e matando o que estiver ao seu alcance. Porém, ratos e baratas podem ser exterminados, embora, neste momento, isso pareça algo quase impossível de acontecer. Eles proliferaram tanto, adquiriram um poder tão grande; que ninguém mais sabe o que fazer. Enquanto a solução não vem, os monstros riem... e como riem... mas, a tragédia maior mesmo de tudo isso, reside no fato de ratos e baratas não se reconhecerem como tais; olham-se no espelho todo dia e mesmo assim não conseguem perceber o quão são sujos e feios. Apesar de ambos viverem em constante pé de guerra, de vez em quando, (como acontece em qualquer outra guerra), as baratas cooperam com os ratos e os ratos cooperam com as baratas, considerando isso, entre eles, um comportamento perfeitamente normal. 
         Na briga pelo poder, morro e periferia são sempre as partes mais visadas, já que ratos e baratas vivem dizendo que nestes lugares só mora gente pobre e ignorante, gente que sofre e sente medo e que por isso se deixa mais facilmente envolver. Todavia, nos bairros elegantes da cidade as coisas não são diferentes. É que lá, uma névoa densa de ilusão engana a mente, os olhos e o coração, aí você pensa que tudo é mais limpo e mais bonito. No final, somente escombros restarão e quem pagará a conta de tudo isso? Gerações inteiras com o futuro comprometido por uma espécie de mutação da qual está cada vez mais difícil fugir. Cedo ou tarde a mutação acontece e alguém acaba se transformando em um dos dois; rato ou barata, ou ainda qualquer outro tipo de bicho asqueroso. Não tem essa de rico, pobre. Entretanto, há um tipo de mutação que de tão fantástica, é tida como conto de fadas e dela, quase não se ouve falar. Tomás acredita em contos de fadas e acha que é neles que está a sua salvação, mas por onde começar?
         O rapaz pensa em seu pai que morreu, não faz muito tempo. Sente tanta saudade que quase nada o consola, por isso ainda reluta em voltar para casa. Escuta alguém chamá-lo e imediatamente procura o intrometido... Ah... É Pingo, seu melhor amigo. Ele, infelizmente, já começou a dar os primeiros sinais da mudança; um desejo exagerado de ter o que não pode e a raiva incontida de se sentir excluído. Largou a escola e agora “só pensa em se dar bem.” Tomás não quer seguir o mesmo caminho do amigo, mas as circunstâncias fazem-no vacilar; mesmo assim, Pingo é seu irmãozinho do peito. Tomás lhe sorri e num segundo o menino está ao seu lado.
         “Te assustei, mano?” Diz Pingo, sentando-se ao lado de Tomás.
         “Pensou que fosse quem?” 
         “Aí Pingo; tudo bem?...”
         “Ó Tomás, te trouxe uma coisa; coisa boa. Presente de Dom Ratão.”
         Então, Pingo tira de dentro de um saco plástico um revolver de grosso calibre; munição e outras coisinhas.
         “Malandro, o negócio é o seguinte. Tem uma parada aí e Dom Ratão qué que tu participe. Ele acha que no futuro tu vai dá um bom patrão. Tu tá garantido e por tabela, teu maninho aqui tá também.”  
         Tomás lança um olhar desinteressado para o ‘presente.’
         “Já não te disse Pingo, que eu não quero saber disso. Eu quero é ser escritor.”
         “Pô, acorda Tomás; qual é...! Desde quando ser escritor aqui nesse país enche barriga. Depois, ninguém entende mermo nada daquilo que tu escreve. Olha ao redor, mano. Onde é que tu vai encontrar essa chance que tu tanto procura? Quem é que vai te dar essa chance? Acorda, pô. Vivendo aqui nessa miséria, nosso destino já tá traçado des’da barriga de nossa mãe. Num temo escapatória, não." 
         “Tu é que tens que olhar ao redor, Pingo. Temos escapatória, sim. Eu não acredito que as coisas devam ser desse modo. Olha! É primavera! Tudo e todas as coisas se cobrem de flores. Até nos lugares mais feios e fedorentos elas vão deixando seu rastro de perfeição. Se quiseres, tu podes continuar sendo o Pingo; o Pingo de ouro; o Pingo d’água...; Tu me perguntas onde é que eu vou encontrar uma chance? Quem é que vai me dar uma chance? Ora, eu mesmo vou me dar esta chance. É uma questão de escolha. Se quiseres, tu podes continuar sendo o Pingo; Pingo de ouro; o Pingo d’água...”  
         “O Pingo de merda. É, Tomás,  teu papo é muito bonito, mas comigo num funciona não. Odeio, mano, sentir a barriga doendo de fome; odeio num ter dinheiro pra comprar o que eu quero; odeio ver minha mãe se acabando de tanto trabalhar; odeio ver ela se humilhar por um pedaço de pão. Só recebo esmolas e disso, não tô afim não. Esses são apenas alguns dos motivos que me faz odiar tanto. Mas, só posso falar de mim. O mal cresce e se espalha e quando a gente vai ver, ó... é tarde demais; parece um polvo de tantos braços que têm...; braços que te alcançam e te envolve onde tu tiver e depois que te pega, ó, já era... Duvido se soltar. O amor que sinto, apesar de grande e forte, num conta muito na minha vida para me salvar. Só tenho tu mano e minha velha mãe, as únicas pessoas com quem me importo e que sei, se importa comigo, mas vocês num pode me salvar não. Eu tô perdido. Talvez, mais do que vontade pra mudar, me falte capacidade. Sabe Tomás, quem acredita no mal tá de caso com ele, é dele pra sempre. Meu ódio num vai acabar é nunca, é mais fácil ele acabar comigo, mas e aí...? Num posso fazer nada. É...é primavera... e eu com isso? Pra mim, tanto faz como tanto fez. Entra estação; sai estação e a minha vida é a mesma. A tua verdade não é a minha verdade.  Num quero saber de flores. O meu negócio é outro. É braço armado e dinheiro no bolso. Mas olha; vou de te contar uma coisa que aconteceu hoje. Tu vai acreditar e vai gostar de ouvir, porque tu gosta mermo é de fantasia. Acho que é por isso que tu num brinca no carnaval. Nessa tua cabeça é carnaval o ano inteiro. Mas, sabe hoje fui obrigado a te dar um pouco de razão. Tem coisa que acontece, que, às vezes, por mais que se procure uma explicação, tu num encontra. Se outro tivesse me contado... Mas, não. Eu vi. Vi com os meus próprios olhos. Num que é que nasceu uma roseira bem na porta de Dom Ratão? Como é que pode? E na roseira tinha uma rosa, uma rosa bem bonita. Dom Ratão invocou e esmagou a rosa, mas, no mesmo instante, outra brotou. Pra lá de irritado, o grande rato pegou a tesoura e cortou a planta ao meio. Mano, assim que ele fez isso, ela cresceu de novo, bem na cara dele, e ainda com mais galhos do que antes; precisava ver, era galho pra tudo quanto era lado, tudo cheio de rosas... Aí, é que ele ficou furioso; tava assustado, mas também furioso e aí quis arrancar a roseira. Tu pensa mano, que adiantou de alguma coisa. As raízes eram tão fundas, que nem homens mais fortes do que ele conseguiram sequer arredá, um pouquinho que fosse, a roseira esquisita do seu lugar.”         
         Tomás achou a história maravilhosa e de repente, sentiu saudades de sua casa, de seus livros e de sua mãe. Sentiu o cheiro do café da tarde, pois apesar de serem pobres, e às vezes, quase não terem nada para comer, o café,  ela nunca deixou faltar. Tomá-lo, era como um ritual; um ritual antigo de purificação. Quanto tempo estava fora de casa? Sua alma se encolheu de vergonha. Rapidamente, Tomás apanha o presente de Dom Ratão e se levanta,  sob o lusco-fusco examina-o por um momento, então sorri. Pingo também se levanta, desconfiado. Tomás põe tudo de volta no saco e se aproxima um pouco mais do precipício. 
         “Tu estás vendo, Pingo. Essa história que tu acabastes de me contar só reforça a minha decisão. Eu te garanto amigo, não vou ser rato e nem barata. Vivi muito tempo à beira do abismo, mas eu não vou cair. Não vou deixar que me empurrem e nem me lançar nele propositalmente. Vou atrás de minha oportunidade. E já sei por onde começar. O meu talento é a minha salvação. Não sou um prisioneiro e as saídas existem sim, estão por aí... A primavera vem para todos e hoje, ela veio para mim também. Percebi que estou desperdiçando minhas oportunidades. Uma flor desabrochou dentro do meu peito; uma flor de  pétalas enormes; e muito perfumada.”
         “Oportunidade!? Onde?! Tá brincando?!” Disse Pingo com um sorriso largo que mostrava todos os dentes, ainda bons.
         “A questão, Pingo, na maior parte das vezes, não é se perdi ou não tive oportunidades, mas sim, eu as vi?”      
         Sem pestanejar, Tomás lançou o saco para as profundezas do abismo, na queda, que aos olhos de Pingo duraram uma eternidade, ele se abriu, deixando cair tudo o que estava dentro.
         “Pô, Tomás, pra quê que tu fez isso? O que é que eu vou dizer pro homem?”     
         “Sei lá, Pingo. Fala o que tu quiseres. Fala a verdade.” 
        “Tu sabe muito bem que se eu falar a verdade, eles te pegam e eu num quero viver com esse remorso”....
         “Talvez tu tenhas até razão Pingo, mas e daí... Quem sabe, se quando vierem atrás de mim eu já não esteja longe. Adeus Pingo; te cuida. Nossas vidas se separam aqui. Se um dia, mudares de idéia e teu modo de ver o mundo, me procura.”    
         “Vou me cuidar. E tomara mano, tomara que pra ti seja assim como tu diz. Quanto a mim, considero não somente uma batalha, mas a guerra inteira perdida. O mal tem raízes tão fundas quanto à roseira de Dom Ratão. Eu num fiz o que devia sê feito e o momento certo pra isso já passou. 
         “Isso, amigo”, disse Tomás, “é só porque tu queres.”
          O jovem achou estranho, porém simbólico, dizer adeus aos pés de um precipício. Jamais se esqueceria dessa tarde de primavera, nem da escolha feita por seu amigo Pingo. O Pingo que podia ser de ouro; O Pingo que podia ser tão brilhante e transparente como um Pingo d’água, e que preferiu ser um Pingo de m.... sua mutação não demoraria a acontecer, logo ele seria um rato poderoso ou apenas, um rato morto, mais um entre tantos.
          Tomás procura não pensar muito na tristeza dessa situação. Está a caminho de casa, entretanto, antes, vira num dos becos. Precisa ver a tal roseira. Sorrateiramente, aproxima-se da porta da casa de dois pisos de Dom Ratão. As ferramentas ainda estão espalhadas pelo chão, sinal de que Dom Ratão ainda não desistiu. Ele deve voltar a qualquer momento. Melhor se apressar. Tomás estende a mão e colhe uma rosa. É para sua mãe. Ela ficará contente de saber que existe uma flor que nunca morre. Presente bem diferente daquele que lhe enviara Dom Ratão.
         O jovem prende a flor em sua cintura e novamente, segue para casa. Mas desta vez, leva a certeza de que tudo será diferente. Corre, Tomás, senão o café esfria. Dentro do barraco a mãe, sempre à espera, recebe o filho com um beijo na testa.
         Tomás e Pingo nunca souberam, mas o saco com o seu conteúdo maldito fora parar dentro de um canteiro que crescia ao lado de um bueiro.
         Dom Ratão, após tentar várias vezes, desistiu de esmagar as rosas ou de arrancar a roseira que, sem explicação, viera nascer à sua porta num dia de primavera.





sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

CATRAIERO CHINÊS


Foto by Pedro Paulo Vieira


Em preto e branco, em branco e preto
Como a vida simples pelo rio
Os chapéus de um de dois
De dois de um não têm três pontas e
E eles, pobres remadores, pescadores?! 
Certamente nunca foram à Espanha
Mas conhecem a China de cor e salteado
Quase nunca estão errados,  e todos confiam tanto que até as aves pegam carona 
Vão pelo caminho de água, deslizando; água, que, talvez não há de ser a água azul do Yang-Tsé
Rio que corre nas veias junto com o sangue
direto ao coração mas, quem sabe um de seus afluentes? Ou, enfim, seja apenas um simples canal, “coisa para inglês ver”, se é que me entendem
Turista fica feliz batendo foto!

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

SAUDADE




Pesa a saudade, onde mora? 
Nem tua sombra, nem um rasto ligeiro me apontam o destino, o teu endereço...
Estás em toda parte, por dentro e por fora!
Não cabe no peito nem no túmulo suspeito, desassossego, dói o passar das horas, estás em toda parte, ó lacrimosa...
Estás em toda parte, por dentro e por fora!


segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

COMPETÊNCIA



         Ele era muito competente e ninguém desconfiaria e se desconfiassem nunca poderiam provar nada. Afinal, que razões ele teria para fazer aquilo? Bem, seu tempo estava se esgotando. Precisava acabar logo com isso. Já estava tudo acertado em sua mente fria e calculista, o plano não tinha como ou por que dar errado... No momento oportuno, sem que o vissem, deixou o trabalho e voltou para casa e rapidamente deu inicio a tarefa. A mulher ainda estava dormindo e silenciosamente trouxe o filho mais novo e deitou-o ao seu lado. Não demorou muito... uma hora depois, saiu de casa, calmamente batendo a porta. Ninguém o viu e certamente, não ouviu nada. Ele era extremamente competente. Sabia disso.

         De volta ao trabalho, cumpriu suas funções como sempre, mas indo e vindo de um lado para o outro, de forma que todos o vissem. Ninguém estranhou seu comportamento e, na hora exata, como sempre, voltou para casa, pois era um marido e pai exemplar....  “ e o show deve continuar!”

         Quando a polícia e a ambulância chegaram, ele já estava à porta, esperando, pronto a colaborar, a dar explicações e chorando copiosamente, contou com o que se deparara... a sua jovem esposa, que ele pensara estar dormindo, estava, na verdade, morta... suicidara-se ao lado do filho enquanto o pequeno inocente estava a dormir.

         Apesar de caracterizado como suicídio, alguns indícios, diga-se, de passagem, considerados por muitos irrelevantes, levavam a crer que havia um culpado, mas como provar? O marido tinha uma reputação ilibada e um álibi irrefutável, se havia um culpado, onde estava e porque havia feito isto? Um crime passional? Poderia ser, embora todos dissessem inclusive o marido, que ela vivia para o lar e para os filhos...  mas, nunca se sabe, e se foi crime passional, ou não, foi premeditado e cuidadosamente posto em execução.

         No enterro, o marido era só desolação, rezando, gritando, chorando a perguntar, para quem chegasse pronto a dar-lhe as condolências, por que ela fizera aquilo, e, num repente, a fim de dar mais veracidade a cena, lançou-se ao caixão, em frenético desespero... era mesmo muito competente, pois todos acreditaram em sua dor.

         Em pouco tempo, como era muito competente em tudo o que fazia, mas também voraz e arrogante, apresentou a noiva linda e grávida, comprou um carro e se mudou do estado... Os familiares tontos com a surpresa, a polícia... há muito desconfiada, ficou mais ainda... mas, ele era extremamente competente, um homem de moral ilibada e um álibi irrefutável e depois um segundo casamento, não queria dizer nada, segundo ele, amigos e parentes, precisava reconstruir sua vida, seus filhos precisavam de uma mãe, quanto ao dinheiro da apólice do seguro, de uma forma ou de outra, o dinheiro tinha que ser usado... tinha agora, uma família maior para cuidar. Ela faria o mesmo... de  onde quer que ela estivesse, cria ele piamente, que abençoara sua união... Assim, todos baixavam a cabeça, concordando... o homem tinha razão... ninguém foi feito para viver só... ninguém tinha o direito de julgá-lo, um homem extremamente cioso de seus deveres de pai e esposo...

         Ele, muito orgulhoso de si, pensava com seus botões: “Puxa, como sou competente!”

         Os anos se passaram sem que nada de fato acontecesse, mas por causa de um simples comentário feito por um vizinho, um dos detetives passou em revista as provas do cenário do suposto suicídio e por causa de um fio de cabelo e uma marca do rosto no travesseiro, o caso foi reaberto. Comprovou-se afinal a culpa do marido.  Ele, diante das provas do crime, confessou...  Matara a mulher, porque queria viver com outra, que era muito mais bonita e estava grávida. Matou-a enquanto dormia e para disfarçar, pôs o filho a dormir ao seu lado. Matou-a porque já não a suportava; matou-a por queria viver em paz (nessa parte, “paz”, para ele, significava o “bom” uso do dinheiro do seguro que, aliás, foi empregado para pagar as despesas do casório) confessou com a frieza daqueles que cumprem mecanicamente um dever, e como era muito competente e sabia disso, conseguiu um ótimo advogado, tão competente quanto ele, que após firmar um acordo, livrou-o da cadeia em menos de um ano e como era muito competente em tudo o que fazia, quando saiu, à porta da cadeia, a mulher e os filhos o esperavam, e num abraço caloroso, voltaram todos, mais unidos do que nunca, ao recesso do lar, aonde, finalmente poderiam desfrutar de toda a “paz” que o dinheiro do seguro poderia comprar. Ele provara que os amava muito e já sofrera o bastante, merecia a consideração da família... e o que era uma vida a mais em toda essa não tão incomum historia? Apenas um detalhe... uma vida... sacrificada,  sim...  desperdiçada... nunca.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Coldplay - What If




What If

What if there was no light
Nothing wrong nothing right
What if there was no time
And no reason or rhyme
What if you should decide
That you don't want me there by your side
That you don't want me there in your life


What if I got it wrong
And no poem or song
Could put right what I got wrong
Or make you feel I belong
What if you should decide
That you don't want me there by your side
That you don't want me there in your life


Oooh that's right
Let's take a breath jump over the side
Oooh let's try
How can you know it when you don't even try
Oooh that's right


Every step that you take
Could be your biggest mistake
It could bend or it could break
That's the risk that you take
What if you should decide
That you don't want me there in your life
That you don't want me there by your side


Oooh that's right
Let's take a breath jump over the side
Oooh let's try
How can you know it when you don't even try
Oooh that's right


Oooh thats right
Let's take a breath jump over the side
Oooh let's try
You know that darkness always turns into light
Oooh that's right

E Se?

E se não houvesse nenhuma luz
Nada errado, nada certo
E se não houvesse tempo
Nenhuma razão ou rima
E se você decidir
Que você não me quer ao seu lado?
Que você não me quer na sua vida?


E se eu comecei errado
E nenhum poema ou canção
Puder consertar o que eu comecei errado
Ou te fazer sentir que eu pertenço a você?
E se você decidir
Que você não me quer ao seu lado?
Que você não me quer na sua vida?


Ohhh, está certo
Vamos respirar e pular pra próxima etapa
Ohhh, vamos tentar
Como você pode saber se nunca tentou?
Ohhh, está certo


Cada passo que você dá
Pode ser seu maior erro
Pode ceder ou pode quebrar
É o risco que você corre
E se você decidir
Que você não me quer ao seu lado?
Que você não me quer na sua vida?


Ohhh, está certo
Vamos respirar e pular pra próxima etapa
Ohhh, vamos tentar
Como você pode saber se nunca tentou?
Ohhh, está certo


Ohhh, está certo
Vamos respirar e pular pra próxima etapa
Ohhh, vamos tentar
Você sabe que a escuridão sempre se transforma em luz
Ohhh, está certo

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ENCONTRO MARCADO



          Não sabia que tinha um encontro marcado. Acordara bem cedo para chegar em tempo à entrevista de emprego na agência de um banco. Seria mais um daqueles dias tediosos, cheios de idas e vindas; correndo atrás do inalcançável, com sorrisos mecânicos, frases clichês, almoços solitários... bom, já estava acostumado, mas naquele dia, nem desconfiava, tinha um encontro marcado.
          O destino tem dessas coisas, não costuma avisar o que vai acontecer, você pensa que o tem sob controle, que pode dominá-lo consultando os astros, apostando na sorte, se benzendo, fazendo mandigas, ou, então, deixando simplesmente a vida transcorrer solta, indiferente ao resultado das ações, quase vivendo por viver... pode-se talvez, sim, conduzir a vida, o destino fazendo suposições, guiando-se pelas percepções, prestando atenção, mas, controlar mesmo, adivinhar o destino, nunca...
         O destino? O que é o destino? É o resultado de nossas escolhas cotidianas, e sendo assim que importa o fim se sempre ficamos enredados em seu núcleo, dando voltas e mais voltas, sem nunca encontrarmos o caminho, a solução?
          Na vida, só a morte é certa, é fato, entretanto, enquanto ela não chega a gente vai se preocupando, vai se endividando, vai se olvidando...
          Será que ter a doma do destino, se tal coisa for possível, é poder escolher também o modo de como se vai deixar este mundo? Dizem que nossas escolhas já foram feitas, lá, bem no principio de tudo, contudo, uma escolha, uma ação inesperada aqui na terra, tem o poder de mudar o curso inteiro de uma vida pré-estabelecida no útero do cosmo. Oximoros. Todavia, acredito que a morte não é aleatória, ela marca hora e local, nós é que nunca sabemos ou não percebemos os sinais, pois nunca estamos prontos, sempre ignorando sua aproximação. Oras, o que te faz pensar que numa manhã qualquer, seja enfim uma manhã clara de sol, num dia primaveril, você é o escolhido da dama de negro? Que sua vida, chatinha, monótona, possa te levar a um fim cotidianamente adiado? Desvia-se de buracos e balas perdidas, de pistas molhadas e engarrafadas, assaltos, discussões, tormentos e vinganças... vai ao médico, tenta se alimentar direito, se vestir decentemente, tudo isso pára, de repente, encontrar-se com quem nem estava agendado...?
           Selou sua sorte naquele momento em que o garçom lhe trouxe a conta; pagou e preparou-se para sair. Na porta um calafrio percorreu-lhe a espinha; tinha que tomar uma decisão... não pensou imediatamente na morte ou na morte imediata, mas tornou a sentir o calafrio... olhou para a direita, olhou para esquerda... demorava a se decidir... tomado de angústia resolveu ir para casa.
          Soube na manhã seguinte que a agência bancária onde ia à entrevista de emprego fora assaltada, houve tiroteio com o saldo de dois feridos e um morto. Pensou, com certa ironia, que o mal estar salvara sua vida, quem sabe se tivesse ido, não seria ele o homem estirado no chão. Se tivesse ido, será que teria havido o assalto...? Com certeza, os bandidos haviam premeditado tudo e marcado o dia numa agenda encontrada no chão, que, na fuga, um deles deixara cair. Tudo minuciosamente planejado, assim dizia o jornal... porém, algo saiu errado, não souberam precisar o quê, exatamente, mas algo saiu errado.  
          Ele deu um meio sorriso, pois pensou que apesar da desgraça acontecida e ultimamente as coisas estarem devagar, era um homem de sorte... cedo ou tarde arranjaria um emprego... só lhe preocupava o fato de ainda estar sentindo calafrios e uma dor horrível no estômago, foi deitar-se... não se sentia muito bem...
          A mulher encontrou-o morto, horas depois... Ataque cardíaco fulminante! Não sabia que tinha um encontro marcado e que já estava bastante atrasado! 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

PRESENTE DE NATAL

Já fazia algum tempo que ele perambulava pela rua, sem destino. O corpo franzino movia-se, indefeso, por entre transeuntes apressados e prédios altos e imponentes. Carros parados, por causa do trânsito intransitável, com seus ocupantes cada vez mais impacientes, e mendigos espalhados ao longo das ruas e avenidas, revelavam o caos moderno no qual a cidade mergulhara. Tudo isso junto lhe infundia um imenso pavor; sua cabeça não parava de girar e assustado, olhava para todos os lados. Ah, se ele adivinhasse...! Se ele adivinhasse, teria se recusado a sair de casa, teria se recusado a deixar o colo morno e protetor de sua avó. Por mais “biruta” que fosse a sua mãe, não esperava ouvir dela aquela ordem brusca e descabida, mandando-o descer, sozinho, no primeiro ponto de ônibus.
         Sim, não era segredo para ninguém que sua mãe era “biruta”; “maluca”; “doida de pedra”; “louca varrida”. Quase sempre, diziam, uma louca mansa, por isso, embora não entendesse ainda todos esses epítetos, entendia apenas que ela era sua mãe querida e que algumas vezes não se sentia bem, nada o levou a suspeitar que naquela manhã tão bonita o passeio que fariam, depois de tanto tempo, nada teria de aprazível e generoso. 
          Contente com o inesperado convite, ela lhe contou em voz baixa, como quem revela um segredo, que sairiam escondido de vovó, pois se ela soubesse certamente não deixaria os dois passearem juntos, coisa com que ele concordou e ficou de boca fechada, nada dizendo a avó e ambos, ansiosos, esperaram ela, a avó, sair, como sempre fazia todas as manhãs. 
         Assim que ouviu a porta bater, o menino foi então até o seu quarto e pegou as economias de sua latinha de moedas, pois, conforme fosse; poderiam vir a precisar. As economias seriam uma bela surpresa para sua mãe. Talvez, com elas, até lhe comprasse um presente...
         No final das contas foi ela quem acabou por lhe fazer uma surpresa, aliás, uma surpresa bem desagradável. Num instante, lá estava ele todo contente; no instante seguinte, a mãe, sem nem ao menos olhar para ele, simplesmente lhe disse, “desce.”
         A princípio o pequeno pensou que ela estivesse brincando; ainda não haviam chegado ao seu destino. Seu coração bateu descompassado; sabia que sua mãe “não batia muito bem” e que por causa disto, lhe dava pouca ou nenhuma atenção; se não fosse o amor de sua avó, estaria totalmente sozinho no mundo. Mesmo assim, gostava dela, gostava de sua mãe; gostava muito. Lembrava-se bem que em dias de completa mansidão, ela dava aquela risada prazerosa; cheia de calor; que fazia os escuros olhos amendoados se encherem de lágrimas. Não... Ela não podia enlouquecer agora.
         Fez que não ouviu... Entretanto, em poucos instantes, a palavra “desce”, pela segunda vez, ressoou em seus ouvidos, cortando as lembranças sem dó. Voltou-se para a mãe, tentando encontrar naqueles olhos um resquício de amor, porém, nas profundezas daqueles olhos escuros e amendoados não viu nada; não viu luz; não viu cor; não viu ódio; não viu amor.... Era apenas aquele olhar sem vida, de olhos opacos e estranhos, olhos de ninguém. Assim, achou melhor obedecer, então rapidamente saltou os três degraus da porta da frente do ônibus coletivo e sumiu. Sua avó, com certeza, mais cedo ou mais tarde, viria em sua busca, mas, enquanto isso teria que dar um jeito para não sentir fome, sede, medo, medo, medo.... solidão!
         Passou as duas primeiras noites, à porta da igreja de São Benedito. Como ele, havia muitas outras crianças por ali, abandonadas, exploradas, tristes... um sujeito, sujo e despenteado, não tirava os olhos dele e por conta disso, mal dormiu. Pela manhã, viu o homem mau-encarado pegar pelo braço duas das crianças e com voz ríspida, mandá-las pedir esmola no sinal, pois estava com fome e precisava tomar seu pingado. O pequeno decidiu correr dali e foi o que fez...
         Seguiu pensativo pelas ruas. Dentro de mais alguns dias, seria Natal. Procurou se distrair olhando as vitrines enfeitadas. Numa delas, um grande presépio, tão antigo quanto seu desejo de voar, mostrava um bebê Jesus gorducho e sorridente. A fome e a sede o obrigaram a se afastar da agradável cena familiar. A tarde principiava a morrer. Agonizante, o sol mostrava uma bela cor laranja. O garoto, sem saber muito bem o que fazer ou para onde ir, seguiu em direção do poente.
         Foi dar numa rua larga, calçada de pedras, conhecida como a Rua dos Comerciantes. Esta rua não mudara muito com o passar do tempo, conservando o mesmo charme que a fizeram famosa. Os casarões ainda eram uma mistura de lar e local de trabalho. Tudo o que fosse possível de se comercializar, encontrava-se na Rua dos Comerciantes. Era tanto o prestigio dessa rua, evocado pelos dias antigos, que havia até um projeto correndo na Câmara dos Deputados, visando transformá-la em patrimônio histórico.  
         Parado em frente à confeitaria, o garoto remexeu nos bolsos e encontrou suas parcas economias; algumas moedas, guardadas com muito cuidado, como se pertencessem a uma arca de tesouro. Eram poucas, mas ao menos por hoje, poderia comprar um pão ou doce. Entrou, e dirigindo-se a moça por trás do balcão pensou em pedir o maior sonho que já vira na vida, porém desistiu assim que viu o preço. Pôs as moedas em cima do balcão, então a moça, bonita como a lua, lhe sorriu, compreensiva, e estendendo o guardanapo de papel, pegou o sonho desejado servindo-o juntamente com um copo de leite.
       Durante alguns dias foi assim. A moça, amigável e bonita, fazia de tudo para amenizar a sua situação. Ela, todo dia, o alimentava e também lhe fazia muitas perguntas, tentando saber mais sobre sua família e como afinal viera parar ali. Penalizada, pensou em abrigá-lo em sua própria casa, enquanto resolvia o que fazer talvez contatar o juizado da infância ou a assistência social, mas o gênio difícil e irrequieto de seu irmão seria uma barreira quase intransponível. Economicamente, ainda dependia dele, pois o controle de tudo ficara em suas mãos, o que de maneira nenhuma era justo. Ela tentava reagir a este tipo de agressão, mas, desde que seus pais morreram o diálogo entre os dois tornou-se humanamente impossível. A alma de seu irmão parecia tomada. Algum djin invejoso apoderara-se de seu coração. Ela, apesar da boa vontade e do esforço precioso, não sabia mais como ajudá-lo. Sua fama de “homem mau” corria à rua inteira, de cima abaixo. Todos o temiam e ninguém ousava, sequer tentava enfrentá-lo. Ela tampouco faria isso. Bater de frente, nunca. Aprendera desde cedo, que para tudo existe a hora certa. Ao seu modo, fazia o que tinha que fazer. Ele de nada podia saber, pois se soubesse, imediatamente, lograva seus planos. Sua estratégia, que parecia banal, não deixava margem a discussões. Namoros e estudos ficaram esquecidos. Tinha na figura de seu irmão, não um amigo e conselheiro, mas, sim um carrasco mórbido e horripilante. Em suas orações, ela sempre pedia que acontecesse alguma coisa que pudesse tocar e aquecer os sentimentos congelados daquele ser atormentado. Agora, a vinda daquele garoto viera somar-se às suas preocupações. Seu irmão já o pusera para correr algumas vezes, xingando-o de pivete e ladrão. Meu Deus, como pode? Ele era tão pequeno...
           À noite, ela mal conseguia dormir. Apesar de ter amenizado o desconforto provocado pela falta das coisas mais simples, seu coração batia descompassado toda vez que pensava nos perigos que a escuridão podia trazer. A moça só sossegava, pela manhã, quando então ele aparecia com seu jeito tímido e trêmulo de passarinho. Será que sua família o estaria procurando? Segundo ele, só lhe resta a avó. O Natal bate a porta. Logo o tempo esfriará e o recolhimento será total.  Ó meu Deus... será que não seria melhor chamar o Juizado de Menor ou a Assistência Social? Eles teriam mais recursos e condições para promover uma busca. Mas e o menino? Ele podia se sentir traído  fugir, aí então é que ficaria difícil. A moça prometeu a si mesma que protegeria o menino, e custasse o que custasse, o devolveria, sã e salvo, a sua querida avózinha.
         O garoto foi ficando por ali. Achou refúgio num velho solar abandonado. Pensou que a casa lhe seria segura e quanto menos chamasse atenção, mais tempo teria para tomar uma direção. Fora o ogro, irmão de sua benfeitora, que, com seu gênio dos diabos, umas duas ou três vezes, o assustou bastante, ninguém ainda o havia descoberto. Em parte, para que isto não acontecesse, valeu-se de sua esperteza; e, em parte, salvou-o à presença de espírito da moça, que sempre inventava uma desculpa para aqueles fregueses mais curiosos.
          O preconceito mesmo negado ficou claro em todas as ocasiões.  Ansioso, o garoto via o tempo passar e sua avó nada de o encontrar.
         Uma semana se passara. Sabia disso, porque seu olhar assim que entrava na confeitaria, era primeiro para o calendário. Suas roupas, que não eram novas, estavam descoloridas e puídas e sua sandália, gasta e prestes a arrebentar. Se não fosse pela bondade da moça, que lhe trouxe algumas mudas e uma sandália nova, isso já teria acontecido ou, coisa pior, teria virado um menino de rua, pedindo esmolas no trânsito caótico, até cair nas mãos de algum tratante. Será que a avó o procurava? Estaria preocupada? E sua mãe, pobrezinha, como estaria? Na certa, pior do que antes. Sempre que ela lembrava de algo errado que havia feito, ficava num estado de dar dó. Sua mãe era como uma princesa prisioneira, acorrentada na parede, sem a mínima chance de escapar, presa pelos pés e pelas mãos. Para ela não havia príncipe encantado nem reino por herança.  Ao contrário da moça da confeitaria, outra princesa, bela como a lua, que embora morando na casa de um ogro, vai fazendo, devagar, o desenho de sua vida. Ela prometera lhe ajudar e ele confiava nela. Ela dissera que até o Natal tudo estaria resolvido, mas o Natal era amanhã!  O que o menino não sabia é que a moça, em sua persistência, boa vontade e intenção, conseguira finalmente localizar sua avó e esta surpresa seria seu presente de Natal!  
            A moça, na manhã seguinte, nem bem o sol havia nascido, apareceu no abandonado solar. Apertou-se-lhe o coração, vê-lo tão miudinho, encolhidinho, encostado aos velhos panos que ela lhe dera por lençol. Ele ainda dormia, talvez sonhando agradáveis sonhos. A moça olhou ao redor, e era como se visse tudo pela primeira vez. As paredes, rachadas e umedecidas, ainda apresentavam os vestígios de uma elegante cor azul. Uma porta, semi-arrancada de seus gonzos, dava para um diminuto pátio descoberto, onde o sussurro macio de uma fonte não cessara. Várias flores, entre elas, rosa, flor-de-maracujá e amor perfeito; flores símbolos do amor se abriam para receber os primeiros beijos do sol. Um lugar em ruínas, mas com uma beleza diferente e antiga. Ela não conhecera os seus moradores. Soube apenas, que fora o lar de duas pessoas que muito se amaram e que, infelizmente, fato do qual muito se ressentiram não tinham deixado herdeiros. Quando a mulher morreu, o marido enlouqueceu de dor. E por muito tempo, errou pela cidade. Andando sem parar, até o fim de seus dias. Foi encontrado morto em cima da sepultura de sua esposa. Dizem que em seu rosto, uma beleza serena resplandecia. Finalmente, havia encontrado a paz.
          Os parentes distantes que haviam recebido o solar por herança o venderam imediatamente, e, em breve, um edifício sofisticado se erguerá ali. Os protestos contra a destruição total do solar impediram o prosseguimento das obras, mas logo será o fim, pois, nada dura eternamente há não ser talvez, as grandes histórias.
          As reminiscências evocadas pelo lugar só faziam ressaltar a fragilidade e a tristeza do abandono. A solidão, como uma concha, envolvia todo o ambiente. Ela, como um ser à parte, também estava envolvida por uma concha de solidão. A casa só; o menino só; a moça só... Por um momento, a moça o contemplou naquele descanso angelical. Depois, decidiu acordá-lo, sacudindo-o carinhosamente. O menino se espantou ao vê-la ali tão cedo, mas logo imaginou que sua presença só poderia significar boas notícias. Afinal, era Natal. A moça, sorrindo, estendeu-lhe a mão. O menino sentiu segurança naquele gesto e também lhe estendeu a mão. Os dois saíram do solar e foram para a casa da moça. Ela lhe dissera que nada havia para temer. Seu terrível irmão saíra e iria demorar, portanto, o pequeno que aproveitasse e tomasse um bom banho.
           O menino fez o que moça lhe mandara. No banheiro, para sua surpresa, ele encontrou toalhas limpas, um sapato e uma muda de roupa nova. Dentro do sapato, havia um cartão de Natal com as frases de costume, mas além dos desejos de felicidade estava a promessa cumprida. Iria ao encontro de sua querida avó e de sua pobre mãezinha. A ansiedade, apesar da água deliciosamente morna, não deixou que se alongasse muito no banho. Enxugou-se e trocou de roupa, mas assim que desceu as escadas, teve outra surpresa; uma mesa caprichosamente arrumada com pães, doces, bolos e café com leite. No centro desta mesa, já por si mesma tão bela e aconchegante, reluzia sob o sol um fino vaso de cristal, de onde saltitavam faíscas coloridas e brilhantes. Aquilo encantou o menino e lhe deu uma idéia. Iria apanhar as flores no pátio do solar para enfeitar o vaso. Elas seriam seu presente de Natal para a moça. 
          Animado, dirigiu-se à porta, mas ao abri-la, deparou-se com o carrancudo irmão da moça que imediatamente o agarrou pelos ombros.          
           “Que viste fazer aqui, moleque endiabrado! Aproveitaste que não havia ninguém e entraste pra roubar?”
          O menino, pobrezinho, assustadíssimo, mal podia falar: “N-n-nãoo... sua irmã deixou-me entrar...”
          Um vizinho que estava à janela, ao presenciar a cena, abriu a porta para observar melhor e logo depois dele, veio outro e mais outro... num instante uma pequena multidão, aguardava em suspense.
         O homem estava suado, parecia transtornado, mas sua carranca foi se tornando cada vez mais suave... neste momento, a moça chegou, trazendo pelos braços a avó do garoto, assustaram-se ambas e soltaram um gemido, porém, nem o menino, nem o homem desviaram a atenção.
         De repente, o homem que era zangado, triste, acabrunhado, abriu um sorriso iluminado e carregou no colo o menino abandonado e com voz embargada falou-lhe assim: “Menino, ouso agora pedir perdão pelos meus modos. Não posso mais te fazer qualquer mal... minha irmã, um anjo de bondade, contigo compartilhou o tanto que temos. Portanto, de hoje em diante, serás como um filho, um irmão, serás bem-vindo a esta casa, que estará para ti e para todos os teus, para sempre, de portas abertas!”
         Um galo cantou mostrando estar de acordo com o dito e com o céu agora enfeitado de estrelas! O que ninguém viu, nem ouviu foi a revoada de anjos passar cantando e afastar pra longe as nuvens pesadas e cinzentas que não mais desabariam ali!    

Cantilena do Corvo

EE-SE BLUE HAVEN

Ee-se encontrou Ahemed na saída de Hus. Dirigia-se ela aos campos de refugiados, nos arredores de Palmira, enquanto Ahemed seguia com seu pa...