Era uma vez, há muito tempo, às margens furta-cores do rio Andirá, piá Andira, que vivia em uma crypta rochosa, perto de uma velha sumaúma. Mas, era só o sol fechar o olho amarelado e ir se deitar que piá Andira começava a se divertir, indo, primeiramente, à pescar no rio os pequenos e distraídos peixes, que, sob o luar, pareciam mais pedacinhos flutuantes de prata.
Embora piá Andira fosse um filho da noite, ele tinha um sonho e o sonho de piá Andira era ver o sol bem de perto; olhar se possível, dentro de seu olho.
“Sonho besta esse de pia Andira” dizia-lhe a lua, “Sabia, piá Andira” continuava a lua em sua cantilena, “que um dia o sol e eu já fomos gente? Nos amávamos muito, mas, nossa sina, piá Andira, é vivermos separados um do outro... ele lá e eu cá... cada um com seus respectivos filhos... e tu, piá Andira, és criatura da noite... não podes jamais mirar o sol e o sol por sua vez, mora tão longe, longe, longe... nem eu mesma sei direito onde ele se esconde; sei que é para além do horizonte, pra lá de onde o vento faz a curva, é só o que sei.”
Porém, piá Andira ouvia a mãe lua, fazia carinha de muxoxo e nem ligava. Pensativo subia para o oco da sumaúma e lá ficava esperando o sol abrir o olho, mas era fiozinho dourado brilhante de luz aparecer e pia Andira sumir para dentro da crypta. Difícil coisa ver o sol... Quem sabe se ele chegasse mais perto? Iria bater à porta de sua casa, seguiria a linha do horizonte, lá onde o vento faz a curva, como disse a mãe lua.
Piá andira, um dia, ouviu falar de uma festa no céu... aí, teve uma ideia... foi de mansinho, à casa do urubu cantor e se enfiou dentro de sua viola. Ficou ali, escondidinho, no escurinho.
Manhã seguinte, urubu cantor pegou a viola e voou, voou até escurecer, chegar ao céu e começar a tocar.
O plin, plin da viola perturbou piá Andira que saiu num instante de dentro do instrumento... foi uma confusão...os outros bichos se assustaram com o voo rasante e às cegas de piá Andira, que havia fechado os olhos só por um momento a fim de se acostumar à luz, e, na correria era um tal de “fecha, fecha, pega, pega, mata, mata”... coitado de piá Andira, que por sorte encontrou uma saída no cuari de uma nuvem.
Piá Andira estava longe demais de casa, longe demais das águas do Andirá... longe demais do sol... passou o resto da noite voando, nem fome sentia e finalmente, cansado, pousou no galho de uma velha mangueira aonde, vigilante, estava uma coruja: “De onde vens e pra onde vais, morceguinho?” perguntou-lhe a coruja.
“Venho de águas do Andirá, fugi de uma festa no céu em que queriam me matar e vou agora, em busca do sol, cuja casa fica além do horizonte, lá onde o vento faz a curva, foi o que me disse a lua. Quero olhar dentro do seu olho”.
“Em busca do sol!? Como pode um morcego ter um sonho tão maluco? O sol é do dia e tu pertences à noite... Nem sabes direito o caminho que vai dar a sua casa, nem eu mesma sei onde fica... é preciso mesmo seguir a linha do horizonte, lá onde o vento faz a curva, mas, como pretendes, com essas asinhas e esse teu voo descuidado., chegar até lá? São tentos os perigos nessa aventura... eu mesma já poderia ter te comido, a tua sorte é que estou satisfeita. Dizem que o sol um dia foi gente... Bom, chega de blá, blá, blá... já, já amanhece, preciso descansar.”
A coruja encolheu-se no galho e piá Andira encolheu-se também, achou melhor contrariar seus hábitos e enfrentar a luz do dia. Nem bem havia amanhecido e piá Andira saiu dali.
A luz ainda doía-lhe nos olhos, pois havia tentado desesperadamente mantê-los abertos para ver o sol se levantar, e os raios queimavam-lhe a pele... Voou um tanto mais na linha do horizonte, quando deparou-se com as águas frescas de um riacho. Estava com fome e sede, resolveu parar à sombra que se estendia ao longo da margem. Enquanto comia, apareceu a onça para beber água.
Piá Andira ficou desconfiado em ver um bicho tão grande por ali àquela hora do dia, mas a onça lhe falou: “Não se preocupe morceguinho... não vou lhe comer. Não me interessam essas asinhas fininhas e essas perninhas fraquinhas, tão magrinhas... se ainda fosses uma raposa... Aí sim... Estás perdido? Que fazes aqui a esta hora do dia?”
“Engraçado dona onça estava a me fazer a mesma pergunta sobre a senhora.”
“Ora... estive metida em uma caçada que não deu muito certo... mas, e você? De onde vens e para onde vais?”
“Venho das águas do Andirá, fugi de uma festa no céu, escapei dos gracejos de uma coruja e sigo em minha busca... vou à procura do sol, cuja morada fica além da linha do horizonte, assim me disse a lua, assim me disse a coruja”.
“Em busca do sol? Uma criatura da noite? Ai, não me faça rir... realmente estás no caminho correto, porém, a casa do sol é mais longe do que se possa imaginar... não estás nem no começo da jornada... nem eu mesma sei onde fica e depois são tantos os perigos...”
“Não importa quão longe esteja e que perigos existam pelo caminho. Eu nada temo.”
“Bravo morceguinho, louvo tua coragem, mas és como a formiguinha dentro do formigueiro tentando alcançar a lua.”
“Preciso ir” disse piá Andira “por enquanto só importa a viagem.”
“Vá, morceguinho, vá, vá... voe logo daqui e boa sorte.”
Piá Andira voou mais longe, seguindo a linha do horizonte, - onde será que o vento fazia a curva? - sem desviar um instante de seu objetivo.
A noite caiu, a lua surgiu, as estrelas se acenderam e se apagaram... passou pelo vagalume, que, curioso, lhe perguntou de onde vinha, fugia do quê e de quem e para aonde ia, respondendo piá Andira que vinha das águas do Andirá, que fugira de uma festa no céu, dos gracejos de uma coruja e do sorriso falso de uma onça... “vou, vagalume, em busca do sol... sigo a linha do horizonte, onde o vento faz a curva... assim me disseram a lua, a coruja e a onça.”
A noite caiu, a lua surgiu, as estrelas se acenderam e se apagaram... passou pelo vagalume, que, curioso, lhe perguntou de onde vinha, fugia do quê e de quem e para aonde ia, respondendo piá Andira que vinha das águas do Andirá, que fugira de uma festa no céu, dos gracejos de uma coruja e do sorriso falso de uma onça... “vou, vagalume, em busca do sol... sigo a linha do horizonte, onde o vento faz a curva... assim me disseram a lua, a coruja e a onça.”
“Siga por aqui, reto toda a vida”, disse o vagalume “e logo adiante encontrarás o vento que, ultimamente, anda um pouco lento. Pegue no seu pé ou suba em suas asas que num repente você chegará ao seu destino.”
Piá Andira voou, voou, voou... passou floresta, passou mar, passou, frio, passou fome, passou ponte, passou monte, passou chuva, chuvarada, passou pássaro, passarada... Passou, passou tempo, passou tormento... passou, passou... A noite caiu, a lua surgiu; as estrelas se acenderam e se apagaram... finalmente, piá Andira encontrou o vento, meio sonolento, fazendo hora dentro do campanário de uma igreja, brincando com os sinos, fazendo-os balançarem pra lá e pra cá, em um monótono blein, blein, blein...
Piá Andira aproveitou-se da mansidão, da frescura do vento e agarrou no seu pé e do pé, pluft, num segundo, pulou pras suas costas.
“Quem subiu em minhas costas sem pedir licença? De onde vens e para aonde pensas que vai?” Perguntou o vento, zangado.
“Eu, piá Andira, senhor dos agouros tristes, mas, que, se tornará o senhor felicidade quando encontrar o sol... Venho de águas do Andirá, fugi de uma malfadada festa no céu em que queriam me matar, escapei dos gracejos de uma coruja e das falsas intenções de uma onça e aceitei o bom conselho de um vagalume... por isso aqui estou... preciso que me leves, pois desde muito persigo a linha do horizonte onde mora o sol, assim me falaram a lua, a coruja, a onça e o vagalume... faltava apenas te encontrar para saber aonde fazes a curva... Estou cansado... minhas asas estão queimadas e minha visão prejudicada. Preciso que me leves.”
“Se este é o desejo de teu coração, prepare-se então... segure-se pequeno amigo.”
O vento, zuuuuuummm, voou na direção do oeste, rápido e certeiro como uma flecha. Passou nuvem, passou ponte, passou fonte, passou monte... passou céu, passou ar... passou mar... cruzou o espaço, estirou o tempo até alcançar a linha do horizonte... mas, quando chegou lá, bem onde faz a curva, voou com tanta ligeireza, que Piá Andira se desequilibrou e caiu... o vento nem percebeu e sumiu assobiando na curva do caminho e Piá Andira, coitadinho, foi rolando, rolando... parando, por fim, aos pés de um enorme e velho pé de jatobá,que, de tão coberto por ervas de passarinho, possuía um aspecto medonho, deveras assustador.
“Quem és tu? De onde vens e para aonde vais?” Perguntou-lhe o velho pé de jatobá.
“Que susto me deste” disse piá Andira “que esquisita esta tua aparência... sou piá Andira, senhor dos agouros tristes, mas que ficará feliz quando encontrar o sol. Para isso persigo a linha do horizonte até bem onde o vento faz curva, onde fica a sua morada, assim me disseram a mãe lua... Venho das margens do rio Andirá; fugi de uma festa no céu aonde queriam me matar, escapei dos gracejos de uma coruja e das falsas intenções de uma onça, aceitei o conselho de um vagalume e peguei carona nas asas do vento, entretanto, lá bem onde ele faz a curva, me desequilibrei e cai... agora eis-me aqui, perdido, sozinho, se nem ter vislumbrado um fiozinho dourado da pestana do olho do sol.”
“Hummmmmm, pequenina criatura... esquisito por esquisito tu também és. Não sei te definir... és um morcego ou um menino feio? Nunca vi nada parecido... metade uma coisa, metade outra; realmente, nada sei dizer-te sobre a morada do sol, sei apenas que estavas no rumo certo até caíres das asas do vento. Não fique triste, amiguinho. Acomode-se aí em meu tronco, deite-se em cima de minhas raízes e descanse.”
Piá Andira achou estranha a observação feita pelo velho jatobá... metade uma coisa, metade outra? Como assim? Olhou para si mesmo e viu que suas asas e garras haviam se transformado em braços e mãos; tocou o rosto e sentiu a pele fina e macia; uma pele humana... tocou as orelhas, mas as orelhas ainda eram pontudas e peludas e as pernas e os pés eram de morcego... piá Andira ficou assustado, mas estava tão cansado que deixou para depois pensar no assunto.
Piá Andira logo adormeceu aconchegado ao tronco. A mãe lua passou por entre a copa da árvore e iluminou o menino-morcego. Suavemente, ela tomou-o em seus braços e acabou a transformação. Piá Andira era agora um belo menino.
Piá Andira logo adormeceu aconchegado ao tronco. A mãe lua passou por entre a copa da árvore e iluminou o menino-morcego. Suavemente, ela tomou-o em seus braços e acabou a transformação. Piá Andira era agora um belo menino.
Na manhã seguinte, piá Andira acordou com alguém a chamar-lhe pelo nome... deparou-se com um outro menino, iluminado como o sol, que lhe disse: “Tua busca terminou piá Andira... finalmente me encontraste. Olha bem dentro dos meus olhos e vês que não há mais diferenças entre nós. Eu sou tu, tu és eu. Vem comigo temos muito trabalho a fazer. De hoje em diante, pertences ao dia e ele só está a começar.”
Piá Andira, sob as bênçãos do velho pé de jatobá, segurou firme a mão que lhe era estendida e fundiu-se a luz irradiante, cada vez mais forte, que emanava do sol até sumirem ambos dentro da paisagem do cotidiano.
E foi assim que terminou a aventura de piá Andira em busca do desejo de seu coração. Porém, quando escurecia, mãe lua olhava, saudosa, para a samaumeira onde o morceguinho costumava pousar depois de uma boa pescaria. Sentimental como ela só, derramava algumas gotas de lágrimas prateadas dentro do rio que então, imediatamente se transformavam em luminosos peixinhos.
Quanto a piá Andira, embora tenha alcançado o ponto máximo de sua jornada; ainda se lembrava de mãe lua e dos murmúrios noturnos das criaturas da noite se movimentando por dentro da mata e quando chovia forte sobre as águas furta-cores do rio Andirá, todos sabiam que era piá Andira, o sonhador menino morcego, a chorar, com saudades da mãe lua.
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