Já fazia algum tempo que ele perambulava pela rua, sem destino. O corpo franzino movia-se, indefeso, por entre transeuntes apressados e prédios altos e imponentes. Carros parados, por causa do trânsito intransitável, com seus ocupantes cada vez mais impacientes, e mendigos espalhados ao longo das ruas e avenidas, revelavam o caos moderno no qual a cidade mergulhara. Tudo isso junto lhe infundia um imenso pavor; sua cabeça não parava de girar e assustado, olhava para todos os lados. Ah, se ele adivinhasse...! Se ele adivinhasse, teria se recusado a sair de casa, teria se recusado a deixar o colo morno e protetor de sua avó. Por mais “biruta” que fosse a sua mãe, não esperava ouvir dela aquela ordem brusca e descabida, mandando-o descer, sozinho, no primeiro ponto de ônibus.
Sim, não era segredo para ninguém que sua mãe era “biruta”; “maluca”; “doida de pedra”; “louca varrida”. Quase sempre, diziam, uma louca mansa, por isso, embora não entendesse ainda todos esses epítetos, entendia apenas que ela era sua mãe querida e que algumas vezes não se sentia bem, nada o levou a suspeitar que naquela manhã tão bonita o passeio que fariam, depois de tanto tempo, nada teria de aprazível e generoso.
Contente com o inesperado convite, ela lhe contou em voz baixa, como quem revela um segredo, que sairiam escondido de vovó, pois se ela soubesse certamente não deixaria os dois passearem juntos, coisa com que ele concordou e ficou de boca fechada, nada dizendo a avó e ambos, ansiosos, esperaram ela, a avó, sair, como sempre fazia todas as manhãs.
Assim que ouviu a porta bater, o menino foi então até o seu quarto e pegou as economias de sua latinha de moedas, pois, conforme fosse; poderiam vir a precisar. As economias seriam uma bela surpresa para sua mãe. Talvez, com elas, até lhe comprasse um presente...
No final das contas foi ela quem acabou por lhe fazer uma surpresa, aliás, uma surpresa bem desagradável. Num instante, lá estava ele todo contente; no instante seguinte, a mãe, sem nem ao menos olhar para ele, simplesmente lhe disse, “desce.”
A princípio o pequeno pensou que ela estivesse brincando; ainda não haviam chegado ao seu destino. Seu coração bateu descompassado; sabia que sua mãe “não batia muito bem” e que por causa disto, lhe dava pouca ou nenhuma atenção; se não fosse o amor de sua avó, estaria totalmente sozinho no mundo. Mesmo assim, gostava dela, gostava de sua mãe; gostava muito. Lembrava-se bem que em dias de completa mansidão, ela dava aquela risada prazerosa; cheia de calor; que fazia os escuros olhos amendoados se encherem de lágrimas. Não... Ela não podia enlouquecer agora.
Fez que não ouviu... Entretanto, em poucos instantes, a palavra “desce”, pela segunda vez, ressoou em seus ouvidos, cortando as lembranças sem dó. Voltou-se para a mãe, tentando encontrar naqueles olhos um resquício de amor, porém, nas profundezas daqueles olhos escuros e amendoados não viu nada; não viu luz; não viu cor; não viu ódio; não viu amor.... Era apenas aquele olhar sem vida, de olhos opacos e estranhos, olhos de ninguém. Assim, achou melhor obedecer, então rapidamente saltou os três degraus da porta da frente do ônibus coletivo e sumiu. Sua avó, com certeza, mais cedo ou mais tarde, viria em sua busca, mas, enquanto isso teria que dar um jeito para não sentir fome, sede, medo, medo, medo.... solidão!
Passou as duas primeiras noites, à porta da igreja de São Benedito. Como ele, havia muitas outras crianças por ali, abandonadas, exploradas, tristes... um sujeito, sujo e despenteado, não tirava os olhos dele e por conta disso, mal dormiu. Pela manhã, viu o homem mau-encarado pegar pelo braço duas das crianças e com voz ríspida, mandá-las pedir esmola no sinal, pois estava com fome e precisava tomar seu pingado. O pequeno decidiu correr dali e foi o que fez...
Seguiu pensativo pelas ruas. Dentro de mais alguns dias, seria Natal. Procurou se distrair olhando as vitrines enfeitadas. Numa delas, um grande presépio, tão antigo quanto seu desejo de voar, mostrava um bebê Jesus gorducho e sorridente. A fome e a sede o obrigaram a se afastar da agradável cena familiar. A tarde principiava a morrer. Agonizante, o sol mostrava uma bela cor laranja. O garoto, sem saber muito bem o que fazer ou para onde ir, seguiu em direção do poente.
Foi dar numa rua larga, calçada de pedras, conhecida como a Rua dos Comerciantes. Esta rua não mudara muito com o passar do tempo, conservando o mesmo charme que a fizeram famosa. Os casarões ainda eram uma mistura de lar e local de trabalho. Tudo o que fosse possível de se comercializar, encontrava-se na Rua dos Comerciantes. Era tanto o prestigio dessa rua, evocado pelos dias antigos, que havia até um projeto correndo na Câmara dos Deputados, visando transformá-la em patrimônio histórico.
Parado em frente à confeitaria, o garoto remexeu nos bolsos e encontrou suas parcas economias; algumas moedas, guardadas com muito cuidado, como se pertencessem a uma arca de tesouro. Eram poucas, mas ao menos por hoje, poderia comprar um pão ou doce. Entrou, e dirigindo-se a moça por trás do balcão pensou em pedir o maior sonho que já vira na vida, porém desistiu assim que viu o preço. Pôs as moedas em cima do balcão, então a moça, bonita como a lua, lhe sorriu, compreensiva, e estendendo o guardanapo de papel, pegou o sonho desejado servindo-o juntamente com um copo de leite.
Durante alguns dias foi assim. A moça, amigável e bonita, fazia de tudo para amenizar a sua situação. Ela, todo dia, o alimentava e também lhe fazia muitas perguntas, tentando saber mais sobre sua família e como afinal viera parar ali. Penalizada, pensou em abrigá-lo em sua própria casa, enquanto resolvia o que fazer talvez contatar o juizado da infância ou a assistência social, mas o gênio difícil e irrequieto de seu irmão seria uma barreira quase intransponível. Economicamente, ainda dependia dele, pois o controle de tudo ficara em suas mãos, o que de maneira nenhuma era justo. Ela tentava reagir a este tipo de agressão, mas, desde que seus pais morreram o diálogo entre os dois tornou-se humanamente impossível. A alma de seu irmão parecia tomada. Algum djin invejoso apoderara-se de seu coração. Ela, apesar da boa vontade e do esforço precioso, não sabia mais como ajudá-lo. Sua fama de “homem mau” corria à rua inteira, de cima abaixo. Todos o temiam e ninguém ousava, sequer tentava enfrentá-lo. Ela tampouco faria isso. Bater de frente, nunca. Aprendera desde cedo, que para tudo existe a hora certa. Ao seu modo, fazia o que tinha que fazer. Ele de nada podia saber, pois se soubesse, imediatamente, lograva seus planos. Sua estratégia, que parecia banal, não deixava margem a discussões. Namoros e estudos ficaram esquecidos. Tinha na figura de seu irmão, não um amigo e conselheiro, mas, sim um carrasco mórbido e horripilante. Em suas orações, ela sempre pedia que acontecesse alguma coisa que pudesse tocar e aquecer os sentimentos congelados daquele ser atormentado. Agora, a vinda daquele garoto viera somar-se às suas preocupações. Seu irmão já o pusera para correr algumas vezes, xingando-o de pivete e ladrão. Meu Deus, como pode? Ele era tão pequeno...
À noite, ela mal conseguia dormir. Apesar de ter amenizado o desconforto provocado pela falta das coisas mais simples, seu coração batia descompassado toda vez que pensava nos perigos que a escuridão podia trazer. A moça só sossegava, pela manhã, quando então ele aparecia com seu jeito tímido e trêmulo de passarinho. Será que sua família o estaria procurando? Segundo ele, só lhe resta a avó. O Natal bate a porta. Logo o tempo esfriará e o recolhimento será total. Ó meu Deus... será que não seria melhor chamar o Juizado de Menor ou a Assistência Social? Eles teriam mais recursos e condições para promover uma busca. Mas e o menino? Ele podia se sentir traído fugir, aí então é que ficaria difícil. A moça prometeu a si mesma que protegeria o menino, e custasse o que custasse, o devolveria, sã e salvo, a sua querida avózinha.
O garoto foi ficando por ali. Achou refúgio num velho solar abandonado. Pensou que a casa lhe seria segura e quanto menos chamasse atenção, mais tempo teria para tomar uma direção. Fora o ogro, irmão de sua benfeitora, que, com seu gênio dos diabos, umas duas ou três vezes, o assustou bastante, ninguém ainda o havia descoberto. Em parte, para que isto não acontecesse, valeu-se de sua esperteza; e, em parte, salvou-o à presença de espírito da moça, que sempre inventava uma desculpa para aqueles fregueses mais curiosos.
O preconceito mesmo negado ficou claro em todas as ocasiões. Ansioso, o garoto via o tempo passar e sua avó nada de o encontrar.
Uma semana se passara. Sabia disso, porque seu olhar assim que entrava na confeitaria, era primeiro para o calendário. Suas roupas, que não eram novas, estavam descoloridas e puídas e sua sandália, gasta e prestes a arrebentar. Se não fosse pela bondade da moça, que lhe trouxe algumas mudas e uma sandália nova, isso já teria acontecido ou, coisa pior, teria virado um menino de rua, pedindo esmolas no trânsito caótico, até cair nas mãos de algum tratante. Será que a avó o procurava? Estaria preocupada? E sua mãe, pobrezinha, como estaria? Na certa, pior do que antes. Sempre que ela lembrava de algo errado que havia feito, ficava num estado de dar dó. Sua mãe era como uma princesa prisioneira, acorrentada na parede, sem a mínima chance de escapar, presa pelos pés e pelas mãos. Para ela não havia príncipe encantado nem reino por herança. Ao contrário da moça da confeitaria, outra princesa, bela como a lua, que embora morando na casa de um ogro, vai fazendo, devagar, o desenho de sua vida. Ela prometera lhe ajudar e ele confiava nela. Ela dissera que até o Natal tudo estaria resolvido, mas o Natal era amanhã! O que o menino não sabia é que a moça, em sua persistência, boa vontade e intenção, conseguira finalmente localizar sua avó e esta surpresa seria seu presente de Natal!
A moça, na manhã seguinte, nem bem o sol havia nascido, apareceu no abandonado solar. Apertou-se-lhe o coração, vê-lo tão miudinho, encolhidinho, encostado aos velhos panos que ela lhe dera por lençol. Ele ainda dormia, talvez sonhando agradáveis sonhos. A moça olhou ao redor, e era como se visse tudo pela primeira vez. As paredes, rachadas e umedecidas, ainda apresentavam os vestígios de uma elegante cor azul. Uma porta, semi-arrancada de seus gonzos, dava para um diminuto pátio descoberto, onde o sussurro macio de uma fonte não cessara. Várias flores, entre elas, rosa, flor-de-maracujá e amor perfeito; flores símbolos do amor se abriam para receber os primeiros beijos do sol. Um lugar em ruínas, mas com uma beleza diferente e antiga. Ela não conhecera os seus moradores. Soube apenas, que fora o lar de duas pessoas que muito se amaram e que, infelizmente, fato do qual muito se ressentiram não tinham deixado herdeiros. Quando a mulher morreu, o marido enlouqueceu de dor. E por muito tempo, errou pela cidade. Andando sem parar, até o fim de seus dias. Foi encontrado morto em cima da sepultura de sua esposa. Dizem que em seu rosto, uma beleza serena resplandecia. Finalmente, havia encontrado a paz.
Os parentes distantes que haviam recebido o solar por herança o venderam imediatamente, e, em breve, um edifício sofisticado se erguerá ali. Os protestos contra a destruição total do solar impediram o prosseguimento das obras, mas logo será o fim, pois, nada dura eternamente há não ser talvez, as grandes histórias.
As reminiscências evocadas pelo lugar só faziam ressaltar a fragilidade e a tristeza do abandono. A solidão, como uma concha, envolvia todo o ambiente. Ela, como um ser à parte, também estava envolvida por uma concha de solidão. A casa só; o menino só; a moça só... Por um momento, a moça o contemplou naquele descanso angelical. Depois, decidiu acordá-lo, sacudindo-o carinhosamente. O menino se espantou ao vê-la ali tão cedo, mas logo imaginou que sua presença só poderia significar boas notícias. Afinal, era Natal. A moça, sorrindo, estendeu-lhe a mão. O menino sentiu segurança naquele gesto e também lhe estendeu a mão. Os dois saíram do solar e foram para a casa da moça. Ela lhe dissera que nada havia para temer. Seu terrível irmão saíra e iria demorar, portanto, o pequeno que aproveitasse e tomasse um bom banho.
O menino fez o que moça lhe mandara. No banheiro, para sua surpresa, ele encontrou toalhas limpas, um sapato e uma muda de roupa nova. Dentro do sapato, havia um cartão de Natal com as frases de costume, mas além dos desejos de felicidade estava a promessa cumprida. Iria ao encontro de sua querida avó e de sua pobre mãezinha. A ansiedade, apesar da água deliciosamente morna, não deixou que se alongasse muito no banho. Enxugou-se e trocou de roupa, mas assim que desceu as escadas, teve outra surpresa; uma mesa caprichosamente arrumada com pães, doces, bolos e café com leite. No centro desta mesa, já por si mesma tão bela e aconchegante, reluzia sob o sol um fino vaso de cristal, de onde saltitavam faíscas coloridas e brilhantes. Aquilo encantou o menino e lhe deu uma idéia. Iria apanhar as flores no pátio do solar para enfeitar o vaso. Elas seriam seu presente de Natal para a moça.
Animado, dirigiu-se à porta, mas ao abri-la, deparou-se com o carrancudo irmão da moça que imediatamente o agarrou pelos ombros.
“Que viste fazer aqui, moleque endiabrado! Aproveitaste que não havia ninguém e entraste pra roubar?”
O menino, pobrezinho, assustadíssimo, mal podia falar: “N-n-nãoo... sua irmã deixou-me entrar...”
Um vizinho que estava à janela, ao presenciar a cena, abriu a porta para observar melhor e logo depois dele, veio outro e mais outro... num instante uma pequena multidão, aguardava em suspense.
O homem estava suado, parecia transtornado, mas sua carranca foi se tornando cada vez mais suave... neste momento, a moça chegou, trazendo pelos braços a avó do garoto, assustaram-se ambas e soltaram um gemido, porém, nem o menino, nem o homem desviaram a atenção.
De repente, o homem que era zangado, triste, acabrunhado, abriu um sorriso iluminado e carregou no colo o menino abandonado e com voz embargada falou-lhe assim: “Menino, ouso agora pedir perdão pelos meus modos. Não posso mais te fazer qualquer mal... minha irmã, um anjo de bondade, contigo compartilhou o tanto que temos. Portanto, de hoje em diante, serás como um filho, um irmão, serás bem-vindo a esta casa, que estará para ti e para todos os teus, para sempre, de portas abertas!”
Um galo cantou mostrando estar de acordo com o dito e com o céu agora enfeitado de estrelas! O que ninguém viu, nem ouviu foi a revoada de anjos passar cantando e afastar pra longe as nuvens pesadas e cinzentas que não mais desabariam ali!