Um corvo, um cobre

Se quiser jogar um cobre a um corvo pobre, será muito bem vindo: chave pix: 337.895.762-04

Quem sou eu

Minha foto
Manaus, AM, Brazil

Translate

Wikipedia

Resultados da pesquisa

Pesquisar este blog

segunda-feira, 7 de abril de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA


Cidade quente! O sol castiga sem piedade.
As idéias e as vontades ardem num fogo invisível, junto com os meus miolos.

(V. A)

DEPOIMENTO NATIVO

por André Gomes

Porra; porra; porraaa...
Estou perdido e com calor filho da puta, mas quando desço a ladeira,
ao longe vejo o rio; longe do meu corpo para me refrescar,
a carcaça e o crânio resfriar a agonia do nativo
massacrado pelo calor.
Porra; porra; porraaa...
Calor que desequilibra; adormece; queima e mata a vontade
de seguir em frente.
Calor; uma desculpa.
Mostra tua face, irresponsável; ruim mesmo, de nascença;
preguiçoso, desequilibrado; falta de vitamina quando criança;
louco; fraco; medroso;sem-vergonha...
Revela-te!


domingo, 6 de abril de 2008

CHAMADO ATENDIDO


A ninguém nada direi...
Silêncio!

CHAMADO ATENDIDO

Foi assim que aconteceu.
Numa bela tarde de sol, D. Morte dava sua costumeira volta ao mundo, quando subitamente ouviu alguém chamá-la das profundezas de seu desespero. Ficou um pouco atrapalhada. Além de detestar esses chamados fora de hora, (este sujeito não era único descontente da vida), havia resolvido naquele dia não atender a nenhum suicida. Por causa deles negligenciara as prioridades e D. Morte, sendo politicamente correta, pensava em obedecer rigidamente o esquema de trabalho estabelecido pelo Grande Senhor desde o princípio dos tempos.
Assim, tapou os ouvidos e seguiu um pouco emburrada o seu caminho. Mas tal esforço não lhe caia bem, pois D. Morte sofria de alguma espécie de transtorno que a impedia de deixar qualquer assunto inacabado e depois o chamado se fazia tão insistente que apesar de sua decisão, não resistiu à compulsão de dar ao menos uma espiada no infeliz, que num momento de pura insanidade, desejava encontrá-la urgentemente.
Finalmente, chegou ao local determinado e percebeu que precisava cumprir a tarefa para a qual fora designada. Era isso que dela esperava O Grande Senhor de todas as vontades. D. Morte soube, ali, naquele instante, que não cabia a ela, e, diga-se de passagem, a mais ninguém; nem ao dito celerado, movido a desespero, a decisão final de viver ou de morrer. Somente Ele possuía tal poder e a decisão já havia sido tomada.
D. Morte, sempre pronta a fazer o seu trabalho, acolheu então em seus braços o pobre desesperado.
Lá fora fazia uma bela tarde de sol.
O jovem suicida deixou mulher e duas filhas. Para elas, a tarde tornou-se cinza.




sábado, 5 de abril de 2008

UM TOQUE A MAIS...



Quando ele tocava, o dia ficava menos triste; tudo se enchia de música, e ele era todo contentamento.
O inferno transmudava-se em paraíso, e a esperança; débil e enganoso sentimento, como principal convidada, adentrava a casa e, educadamente, sorria para todos.
O sol, penetrando pela janela aberta, as sombras dissipava e sobre o adorável músico estendia seu manto de luz.
Inesquecível!
A partitura de Autumn Leaves sempre ao alcance: perto do maço de cigarros e do copo de água.
O rock e o blues na cabeça e no coração; o jazz na palma da mão; o funk e o soul saltando, no ágil dedilhar das cordas do instrumento.
Agora, o baixo e o violão, encostados em um canto, aguardam o retorno de quem não mais irá retornar.
A casa está vazia; apagaram-se as luzes, mas Eu sei que vou te amar, solfejado, ainda ecoa em meus ouvidos.
O legado que deixou é feito de música; paz e amor, mas, a saudade e a dor são as partes que me tocam.



Do livro  RÉQUIEM; Virgínia Allan; Editora Scortecci

sexta-feira, 4 de abril de 2008

OS MEUS, OS SEUS, OS NOSSOS SABERES E O DIA DE AMANHÃ

“Amor, dedicação, aprender e doar, o outro olhar, cura coração”. *

E eu na contra-mão procuro uma indicação do rumo certo a tomar. Solução...?! Decisão solitária de um coração abalado por peripécias sofridas das vicissitudes da vida. 

Nasce em mim o sentimento, de que não existe pior tormento do que aquele de manter-se indeciso, e, entre o sul e o norte, passeia a minha sorte, enquanto espero amargurado, que o céu, por mim, faça o trabalho.

Seria um alívio, a remissão total de um coração maltratado, escolher um caminho e por ele seguir sossegado, eu, cavaleiro andante, errante, ferido em minha dor, aprendiz do amor, peço, com a alma em oração, o poder de doar, a outro, o olhar que cura coração.





*frase de Pedro Armando Furtado Volkmann

quarta-feira, 2 de abril de 2008

RAMONES FOR KIDS

Não faz muito tempo fui a um aniversário de criança e, lá, um garoto charmoso e cabeludinho, usando com orgulho uma blusa preta, com o nome da banda The Clash, para meu prazer, deu-me uma overdose de Ramones... Ramones na veia, embora diluído, posto que era a versão RAMONES FOR KIDS, mesmo assim fez um baita efeito. De repente, vi-me de volta ao “túnel do tempo”, quando eu ainda em plena contestação juvenil fui atraída pelo movimento punk. Imaginem, cheguei a andar de coturno e cabelo pintado e espetado, quase beirando ao radicalismo dos “carecas”.. mas esta é outra história... Aliás, voltando ao assunto, a música sempre foi muito presente em minha vida, desde pequena. 

Na adolescência, vivenciando um pouco a “rebeldia sem causa”, mergulhei em sons e ritmos mais pensados / pesados, na tentativa de descarregar a raiva e a frustração interior. É que por baixo de minha aparência calma e tranquilizadora, era eu uma bomba; prestes a explodir, igual a qualquer adolescente, sem tirar nem por, e, nesse conturbado período da existência pelo qual todos nós passamos, nos perdendo e nos encontrando, tudo o que acontecia a nossa volta servia como pretexto, fonte de protesto e indignação, sendo o homem, como sempre, o alvo de toda essa marcação.

Há mais de um ano tenho mantido certa distância da música, desde a morte de meu marido, que era músico e tinha paixão por seu instrumento, o contrabaixo elétrico, e, só agora, lentamente, é que estou retornando a essa maneira maravilhosa de dar vida aos sentimentos. 

Pois é... Mas enquanto cantava, ou melhor, sussurrava, “I wanna be your boyfriend”, “Sheena is a punk rock” e outras, tendo ao fundo o coro infantil, ia pensando a quantas anda o mundo e me deu uma profunda tristeza, mas também um pouco de felicidade e satisfação. 

Lembrei-me com saudade desse tempo que já ficou pra trás e dessa gente que fez parte de minha vida e que nos dias de hoje pouco tenho visto ou tido noticias. 

Sou saudosista? Sou sim, e muitos de meus textos giram em torno de recordações, do que é “isto ou aquilo” ou do assim é, mas bem que poderia ter sido... Pura recordação e saudosismo de um tempo em que a vontade de mudar, realizar o novo, era um imperativo. Porém, “como é comum de acontecer entre os homens” com tudo a gente se acostuma. Acostuma-se com as presenças e com as ausências, com o claro e com o escuro... E, muitas vezes, num ato de extrema e humilhante submissão, porque estamos “acostumados”, calamos a voz, baixamos a cabeça e os braços e depomos as armas, mas se fazemos isso, com relativa facilidade é porque não estamos acostumados, ainda, a ir à luta. Entretanto, a meu ver, o ontem não é melhor do que o hoje; só que hoje podemos acabar com tudo num abrir e piscar de olhos. Temos saudade de uma época que achamos que era melhor por termos saudade, na verdade, é de nós mesmos e de nossa capacidade de se indignar, de brigar, temos saudade de pensar que poderíamos fazer a diferença e revolucionar o mundo. Fizemos diferença, sim, mudamos muita coisa sim, mas a vida é um processo ininterrupto e enquanto dormimos, enquanto comemos, enquanto nos divertimos, enquanto envelhecemos tanta coisa continua a acontecer por aí, coisas boas e ruins. 

Dizem que a desgraça e a alegria estão harmoniosamente espalhadas entre nós e assim vamos vivendo... até quando e até onde? Não sei, não sabemos... Conscientemente, o homem tem evoluído mas, às vezes me pergunto se haverá tempo para uma remissão, se haverá tempo de salvar-nos e dessa forma salvar a Terra, que, enquanto aqui estamos é o nosso lar e lar será dos que depois de nós haverão de vir, quer isto dizer que estamos todos em um mesmo barco, infelizmente, capitaneado por mentes sombrias e mesquinhas, é preciso então que nos juntemos e realizemos um motim, onde cada um possa empunhar a arma que melhor souber manejar. 

Nos tempos atuais é necessário, não só aos jovens, mas a nós, ao homem, como um todo, que possamos ir além de idealismos e estados de utopia, é preciso que possamos ir além de nós mesmos com a mesma garra e raiva com que pensamos, outrora, provocar uma revolução. Nossa meta deveria ser sempre para o alto, porém, certamente nada nos protegerá de nossa própria estupidez e estúpidos temos sido já há um longo tempo.

Creio eu que é preciso haver progressos, mudanças e nesse caminhar da raça humana, muito ainda se perderá, muito ainda ficará para trás, as coisas são como são, mas nessa caminhada podemos construir, buscar um ponto de apoio, um “porto seguro” dentro e fora de nós. 

Gosto de imaginar; acredito mesmo nisso, que a aventura humana sobre a Terra não é em vão e quando chegar a hora e tudo aqui tiver que deixarmos, depois de termos descoberto quem ou o quê; somos, e tivermos feito do melhor modo a nossa parte, iremos ter ao lugar onde todas as almas, centelhas de luz, retornam, ao lugar de origem, de volta ao Grande Sol, um sol enorme, que brilha e ilumina todo esse vasto Universo. Acredito, creio mesmo que há perdão para tudo, para todos e para todas as coisas. Acredito, creio mesmo que o sofrimento, muitas vezes desnecessário, não é inútil. Não podemos, e talvez jamais possamos entender certas coisas que nos acontecem, todavia é-nos necessário seguir e completar a jornada que nos foi confiada. Em relação a esta parte, a raiva contida dos meus tempos de adolescente tem me ajudado a sobreviver e vou tentando reter o temor e o desassossego em meu coração de um futuro incerto para que minhas filhas, e outros, em meu entorno, possam acreditar que tudo há de melhorar. E para cada criança abandonada, molestada, assassinada, haverá o dobro de crianças felizes e satisfeitas. Para cada ser perseguido, roubado, caluniado, haverá o dobro em prosperidade, confiança e justiça. Beijo minhas filhas com a esperança de que tudo isso seja possível. Que a ilusão não seja o alimento preparado e servido para os que esperam e trabalham por uma boa e nutritiva refeição.

Sobre o ato de recordar, li certa vez um artigo, cuja intenção ou propósito foge-me a memória, (perdoem-me aqueles que o conhecem se aqui cometo alguma ignorância em relação a este assunto, pois o tal artigo já o li faz tempo) em que o autor afirmava que todo saudosista é um necrofilo já que vive; nutre-se de coisas mortas. Não concordo. Recordar é preciso. Recordar nos ajuda a manter-nos sãos e vivos. Recordar ajuda-nos a lembrar de nós; de quem ou o quê somos e por que estamos aqui. Viver na recordação, fazer disso a base de sua sustentação é que não é necessário, como bem dizia o poeta Fernando Pessoa: Navegar é preciso, viver não é preciso, pois a vida não possui precisão, exatidão, muda a todo instante... O segredo é o equilíbrio. Para mim, necrofilia, morbidez é não recordar, como se isso fosse possível, e numa espécie de autofagia, digerir-se a si mesmo, culpando a Deus e o mundo por isto ter lhe acontecido. Ah, querem saber, me desculpem o palavrório... todo esse discurso só porque ouvi Ramones em versão infantil... RAMONES FOR KIDS...

segunda-feira, 31 de março de 2008

PERDAS NECESSÁRIAS?!...



Melancólico abril, molhado de chuva!

*

Retire-se de meu coração, estás a me perturbar. 

*

Dizem que o lar de um homem é onde está seu coração, mas onde está meu coração. Já não sei...

*

Diz um ditado que "se Mohammed não vai à montanha, a montanha vai a Mohammed". Sei que muitos não tem tempo de parar e fazer uma leitura, e, eu, por minha vez, tomo por veículo a Internet para chegar mais perto ao público leitor, mesmo que nem sempre os resultados dessa expedição sejam satisfatórios. Mas, no que depender de mim, persistirei/insistirei nesta aproximação, que, apesar dos pesares, é extremamente valiosa. Abril, melancólico e chuvoso, começa amanhã, abrindo o mês, o famigerado"dia da mentira". Quisera eu que tudo o que me aconteceu neste mês, há quase exatos dois anos, não tivesse mesmo passado de uma grande peça, uma farsa descarada do destino, aonde o choro compulsivo, de repente, se transformasse em riso... meu "Abril despedaçado"... Próximo está o aniversário de morte de alguém que muito amei e que muitos no meio musical de minha cidade conheceram... e de certa maneira, pensem o que quiserem, porém, uma das coisas que movem um escritor é justamente a tentativa de clarear suas idéias, e, assim, as idéias de outros... é também uma tentativa de entender o porquê de certas ações praticadas pelos seres humanos... talvez, tal entendimento seja impossível, mas "buscar o impossível nos ajuda a conseguir aquilo que é possível".

Vou falar de perdas... Perdas são necessárias quase sempre, sabemos disso... Estamos sempre ganhando ou perdendo algo, seria o que diriam alguns, a “lei da compensação”, se é que isso existe. 

Pra se ganhar, se deve perder... o quê?... Eis a questão, pois hão de concordar que há perdas irreparáveis... Ao longo da vida, vamos deixando/perdendo/encontrando “coisas’ pelo caminho, é incrível o que vamos deixando/perdendo/encontrando/arrastando ao longo de nossa jornada... Falo “coisas” no sentido mundano, de objetos materiais, mas, também no sentido geral, como sentimentos e pessoas, tanto no sentido figurado quanto no literal... Pois há quem, literalmente, perca até gente, ou porque foram negligentes e se esqueceram de que havia alguém seu, dependente, à espera em algum lugar, ou seja, então, porque, por um momento de desatenção, fica, a partir daí, com toda sua vida pendente, presa a um ansiado desenlace do “o que foi que aconteceu?”, ou ainda, porque alguém que saiu pra “comprar um cigarro”, um doce, um pão... e pronto... nunca mais foi visto. Há quem suma por vontade própria, há quem seja levado, sequestrado do seu ambiente familiar por alguma causa obscura, mas, seja lá de que forma for, para mim não há nada mais terrível, nem a morte, do que um súbito desaparecimento (embora coloque os suicídios, os assassinatos e os genocídios no mesmo grau de terror e incompreensão) esse deve ser o pior/maior dos castigos, sejamos nós merecedores ou não de tal punição. Não existe consolo para esse tipo de dor.

Nada acontece por acaso, dizem alguns, dizem que tudo o que nos acontece tem suas razões... Talvez... penso que sim... Achei que podia terminar este artigo sem sofrimento, mas, na verdade, não posso... faço parte de milhões de seres no planeta que passaram por este tipo de dor e constrangimento. Conto, já disse, o suicídio como um desaparecimento súbito, o meu “ente querido” não desapareceu porque quis, nem foi levado por estranhos, porém, deu cabo de si mesmo, tirou a própria vida num momento de desatino. Aos que passam por isso, aos que recebem essa cota de infelicidade que a vida traz, que tenho a dizer? Nada... achei que teria... até por mim mesma, achei que teria e poderia citar milhões de exemplos, contar centenas de causos, escrever mil e uma histórias... mas, em meio ao artigo, percebi que não adiantaria...“Nada é para sempre”...nem a dor... a frase me recorda a mandala tibetana... uma linda e imensa mandala construída com grãos de areia fina e colorida que é destruída tão logo fica pronta... Eu sei que as dores, embora parecidas, não são as mesmas e eu rezo a Deus todo dia, pedindo para que isso não mais me aconteça; rezo a Deus todo dia, pedindo consolo para os que não conseguem se consolar de suas perdas. Acho que o melhor remédio para nós e nossos males, senão a cura pelo menos um meio de amenizá-los, é nos engajarmos pra valer na vida cotidiana, indo a fundo, nos interessando pelo que está acontecendo ao nosso redor, estando no mundo, mas, sem, contudo, a ele pertencermos. Esperando e trabalhando por dias melhores que certamente virão, devolvendo à nossa longa espera a sabedoria necessária em aceitar, enfim, que não somos os únicos “desamparados” do planeta e que nossas desditas possam, ao menos, aos outros, servirem de exemplos.

domingo, 30 de março de 2008

RECORDAÇÕES DA CASA DA COBRA


CASA VELHA DE MINHA INFÂNCIA


Ainda trago dentro de mim uma casa velha pequena e pobre, toda de madeira, telhado de zinco e quintal grande, com pés de araçá, abacateiro, abieiro, goiabeira, com direito a gato, jabuti, papagaio e cutia. Bendita casa velha; pintada de azul, bem no meio de uma rua feia; rua de ladeira, barrenta e escorregadia, mas que apesar de tudo foi, durante anos, o melhor lugar do mundo. 

Na calçada vermelha, que ficou rosa e rachada com o passar dos anos, brincávamos de anelzinho, de roda, de pular corda. Nela balançava uma cadeira de macarrão em que se sentava meu pai para olhar o céu, antes punha um disco na vitrola e acompanhava o cantor, que bem podia ser Francisco Petrônio, Agostinho dos Santos, Angela Maria... e lá ficava até o anoitecer.

Casa velha de minha infância; cheia de histórias, casos, lendas, lembranças; as travessuras de meus irmãos, as festas, os dias de colégio, a família, os amigos, os ganhos, as perdas, as primeiras paixões e os primeiros enganos!

O tempo passou, me apaixonei, casei, tive uma filha, e mudei desta rua, mas não abandonei a casa de minha infância. Levei-a comigo, mas, vez por outra uma sombra a envolvia e embaçava meus pensamentos. No bairro onde antes vivia com minha pequena família, havia um vizinho, senhor de cabeça branca e olhos tristes, que sempre nos fins de tarde tocava as mesmas músicas que meu pai costumava ouvir e as cantava também; então, nesses momentos, feito magia, a sombra se desfazia, e ela, a casa velha, reaparecia em toda a sua pobreza e perfeição e isso trazia tristeza e alegria ao meu coração, pois via na figura deste senhor a alma de meu pai, e lá me sentia de volta ao começo.

Porém, o tempo, inexorável, passou outra vez, tive mais uma filha... Enviuvei e retornei para a rua feia, rua de ladeira, não mais barrenta e escorregadia, de novo a casa de meus pais, hoje uma construção de dois andares de tijolo, pedra e cimento, para o aconchego quente do colo de minha mãe viúva e embora a lembrança da casa velha de minha infância, misturada a dores e saudades mais recentes, ainda seja muito presente, às vezes, a sombra escura torna a envolvê-la e ela desaparece por algum tempo; mas só por algum tempo... Eis que realmente agora estou de volta ao começo de tudo, em todos os sentidos, sozinha, com duas filhas pra cuidar... Mas não me lamento. Vivi, e ainda vivo situações e sentimentos que há poucos seres são dados viver. A alegria não foi embora de todo, nem a intenção de fazer tudo, sempre, cada vez melhor. Esta lição de bem / saber viver, aprendi com meu pai e meu marido, continuo aprendendo de minha mãe e tento passá-las as minhas filhas, com a mesma certeza e o mesmo ardor que recebi desde os primeiros anos de minha vida.


Do livro Moronetá-Crônicas Manauaras; Virgínia Allan, Editora Valer 

sábado, 29 de março de 2008

UMA JANELA PARA A LUA


Eu tinha uma janela para a lua, uma janela toda azul salpicada de estrelas, mas um buraco negro a engoliu, e lá se foi minha janela e quase toda a minha vida também.  

De vez em quando em sonhos o gato risonho do País das Maravilhas [1] aonde certa vez, enquanto repousava, foi parar a menina Alice, de vez em quando ele aparece e se mete por dentro do buraco e dá-me aquele sorriso, um sorriso grande e iluminado, e assim eu consigo vê-la, apenas por uns instantes, trancada e virada de cabeça para baixo. 

As estrelas de minha janela toda azul, pobrezinhas, estão completamente apagadas, sem brilho algum, pois não é fácil viver na mais pura, crua e negra escuridão / solidão; não há brilho que resista, pois buraco negro que se preze, para poder manter sua fama de vilão não pode deixar nada sair de dentro dele, nem mesmo um fiozinho de luz. Em buraco negro, que segundo alguns estudiosos do assunto é tudo, menos um buraco, nada se vê e de lá nada sai.

É uma pena que eu só possa ter uma visão de minha janela toda azul, apenas em sonhos ou em pensamentos, o que vem, enfim, a dar no mesmo. Minha janela toda azul, salpicada de estrelas, inteiramente aberta para a lua, era assim como um porto seguro, minha fonte de inspiração e renovação, minha joia rara guardada no mais recôndito de meu ser, mas, que, entretanto, para o meu desalento, ficou para trás, em uma outra vida, e de vez em quando, no lamento da saudade, volto a rever / viver.

O buraco negro engoliu minha janela toda azul salpicada de estrelas escancarada para a lua arrastando também consigo dias iguais a estes, dias de sol, de chuva, de vento, de céu azul ou cinzento, que, para mim, no entanto, de um jeito ou de outro, foram dias mais felizes, ou talvez, eu, quem sabe, mais jovem e ingênua, tivesse maior capacidade de acreditar em mudanças, sempre para o melhor, que nos são proporcionadas pelo lento / veloz passar do tempo.


Costuma-se dizer que quando “Deus fecha uma porta, abre uma janela”, o meu caso foi o inverso, Ele fechou uma janela... mas, ainda acredito em mudanças, sempre para o melhor, tanto é assim que tento ficar de fora do campo gravitacional do buraco opressor, embora minha capacidade de crença no ser humano tenha diminuído bastante. Mas, afinal, contudo, porém, todavia, deixemos o passado descansar em paz. Nem tudo está perdido e como a esperança é a última que morre vale-nos lembrar que todo buraco negro já teve seus dias de estrela.



[1] Alice no Pais das Maravilhas; livro do autor inglês Lewis Carroll

POR QUE CONTO HISTÓRIAS?!...

Saiba amado meu, que eu conto histórias a fim de propagar a verdade; o amor e a gentileza entre os homens.

Quando falo destas coisas ou as tento expressar com minha pena, algo em mim se transtorna e percebo o alívio que sua exposição traz a minha alma e ao meu débil coração. Se a tristeza é um chamado de Deus, é um chamado muito difícil de escutar, uma vez que insistimos em esquecer o amor e valorizar a dor.

Para acompanhar meus relatos, faço uso da flauta e do alaúde. A melodia que sai destes instrumentos deixa o meu ser, um céu escuro clareado apenas pela lua, repleto de milhares de estrelas, pequeninas e brilhantes, e, nestes instantes, descubro aonde realmente se esconde a perfeição, e, é em teus olhos, amado meu, e a ti, somente a ti, ofereço a chave que abre a câmara onde se oculta o tesouro, ela jaz escondida sob minha língua em forma de palavras. Para o vulgo isso pode parecer estranho; mas, para o sábio a verdade se revela...

quarta-feira, 26 de março de 2008

ERRANTE


Era uma vez, há muito tempo, mas há tanto tempo que a própria palavra tempo era destituída de qualquer significado, existiam cidades cuja população era composta por toda sorte de gente, gente de todos os tipos e cores, de todas as alturas e de todos os tamanhos (altas, baixas, gordas, magras, gigantes, anões...) gente com todo tipo de aspecto, sentimento e disposição de caráter, gente com todo tipo de gosto e para todos os gostos, enfim, uma mistura variada e surpreendente, que, embora em menor quantidade espalhada sobre a face da terra, em nada diferia das que vivem nos dias de hoje.

Entretanto, apesar da grande diversidade de pessoas, havia um homem que vagava; errante, pelos quatro cantos do mundo, indo de cidade em cidade, pois se sentia extremamente só... e tão só se sentia este homem que buscava, buscava e buscava... não sabia muito bem o quê, somente que buscava alguma coisa e, nessa situação desequilibrada, causada pelo anseio de encontrar e dar um significado à própria busca, justificando assim a sua existência, se acomodou; comodamente só, mesmo estando entre, e, ao lado, de tantos outros tão buscadores quanto ele.

Todavia, certa feita, numa dessas curvas do caminho, encostou-se a uma pedra que não percebera estar quebrada e esta então lhe rasgou a pele, abrindo-lhe uma ferida.

Primeiramente ele pensou que esta ferida era somente uma conseqüência advinda das dificuldades impostas pelo caminho que havia escolhido e, por algum motivo, que mais tarde se esclareceria, a ferida estava ali. Então, seguro de que um dia entenderia outra vez se acomodou. Porém, tão só este homem se sentia que começou a acreditar que a ferida poderia ser uma solução, um remédio a sua solidão e assim pensando fez-se amigo de sua ferida.

Mas, com o tempo, a ferida principiou a desaparecer, já que havia se cumprido o seu ciclo reparador. O homem, ao ver que sua amiga o abandonava, se desesperava e, outra vez tornava a abri-la somente para não se sentir só.

No começo, usava um pedaço de madeira para se coçar; logo depois, um bico de pássaro morto e, a continuidade, seus próprios dentes. O homem sangrava e desse modo, não deixava a ferida se fechar, pois, em sua companhia, não se sentia tão só como antes.

Um dia, cansada de tentar em vão cumprir o seu ciclo determinado, a ferida, que era muito sábia, disse para o homem: 

“Escute-me... estou contigo há um longo tempo, mas, agora, preciso ir, preciso desaparecer. Conheço bem o teu desespero e a tua solidão; sei o quanto te sentes só e sei também que encontraste em mim uma companhia e, por isso, até o momento, tenho sido bastante tolerante para contigo, mas, para o bem de nós dois, chegou a hora de nos separarmos. Se continuares a manter-me aberta, sem fazer absolutamente nada, impedindo inclusive a passagem do tempo para que o mesmo me cure, começarei a crescer, e, pouco a pouco, tomarei todo o teu corpo, e sem dúvida, te matarei. Porém, se fizeres o que é natural de se fazer, isto é, se fores capaz de me lavares com cuidado, para que não deixe nenhuma cicatriz, permitindo que eu siga em meu caminho, distanciando-me de ti, aí, então, estarás agindo sabiamente e estarás, acima de tudo, te fazendo um favor ao transformar-te em um homem novo, pois, aquele que soube curar sua ferida, soube cuidar-se; soube entender-se, soube amar-se e um homem assim, que soube fazer tudo isso a si mesmo, certamente, jamais, nunca, estará só”. 

EL HOMBRE QUE SE SENTIA SOLO; Tradução e adaptação; Virgínia Allan

Cantilena do Corvo

EE-SE BLUE HAVEN

Ee-se encontrou Ahemed na saída de Hus. Dirigia-se ela aos campos de refugiados, nos arredores de Palmira, enquanto Ahemed seguia com seu pa...